terça-feira, 30 de março de 2010

Sobre o morcego e o disco voador

Acho que ele só gosta de mim. Depois que nos conhecemos ele está sempre por aqui. O primeiro encontro foi no meio da madrugada, por volta das quatro, na minha rua, em plena urbanidade classe média amontoada, vazio pra lá, vazio pra cá, dia de semana, eu e a cachorra que, desesperada, havia me acordado, focinho na cara, sapateado de patinhas até que eu levantasse, me vestisse, entendesse o recado, o elevador, a coleira, o porteiro dormindo, o portão eletrônico e o morcego. Sim, o morcego. Sozinho, imenso, voando em espirais, procurando nas poucas árvores que sobreviveram aos sobrenaturais temporais do último verão os coquinhos que as maritacas barulhentas da manhã esqueceram de comer. De repente eu tinha treze anos de novo. De repente eu experimentava voltar sozinha para a casa de praia no meio da madrugada. Uma escuridão do além, lá atrás, muito mais do além do que o além de agora, escuridão com barulho de mar, escuridão trezentos e sessenta graus. E com ela, os medos. Medo de passar em baixo dos chapéus-de-sol onde o escuro era ainda mais escuro e onde centenas de morcegos giravam, giravam, espiralavam com o som agudo do seu sonar que arrepiava até a nuca, coquinhos semirroídos caindo e rolando. Outro medos que vinham junto, num mesmo pacote imaginário, medo de tarado, de cachorro bravo, de assombração, do meu pai acordar e não me encontrar em casa e, o pior de todos, medo de disco voador. Sim, o local era perfeito para um pouso, o céu limpo, pontilhado, se houvesse algum disco voador querendo visitar as vizinhanças, não haveria motivo para escolher outro aeroporto. E eu ali, dando bandeira. Os medos e as dúvidas se alternavam com o barulho de mar, de sonar, mar de sonar, mar de sonhar, sonho de voar, pé descalço na areia, pé descalço na grama, espirais, espirais, espirais e agora, tantos anos depois, esse morcego me aparece aqui, do nada, na minha rua, na porta minha casa, me trazendo uma saudade danada. Dos medos, não das dúvidas, essas ardiam demais. Parece que ele, o morcego, só aparece para mim. A cachorra nem percebe quando ele brinca de escanear os passeantes noturnos nessa colônia de concreto. Meu amor diz que nunca viu o tal morcego. De onde ele veio, eu não sei, mas desconfio que tenha vindo de mim, do meu passado, de quem eu fui e não lembrava mais. Talvez seja preciso tomar um coquinho roído na cabeça para lembrar a delícia que é caminhar sozinha com medo do disco voador.