quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Descida ao inferno (esse velho tema épico)

O sofrido Natal já era passado e aquela semana de bônus de fim de dezembro parecia ao mesmo tempo longa e curta demais. Constatou com alguma amargura e nenhuma surpresa que os trajes de banho arquivados desde o último verão já não eram mais os mesmos. O tempo é implacável. Haviam envelhecido no fundo da gaveta, sozinhos. Não haveria para ela nenhuma escapatória: deveria quebrar seu delicioso momento de ócio pouco criativo e enfrentar o trânsito esquisitamente calmo para obter algumas peças fundamentais para as iminentes e merecidas férias. Respirou fundo e foi.

A confusão manobrística estabelecida na porta do local já prenunciava aquele clima agressivo do consumismo feminino que só os bastidores de fashion week podem de longe às vezes mimetizar. Entrou logo, sem muito pensar. O âmago da loja abrigava no mínimo três dezenas de mulheres de idades variadas unidas e ao mesmo tempo separadas por um único objetivo: enfrentar dignamente o campo de batalha arenoso que geralmente chamamos de praia. As camisetas verde-bandeira facilitavam a identificação das vendedoras que atendiam clientes múltiplas com a mesma atenção que os mergulhadores de snorkel dedicam aos peixinhos prateados dos cardumes. Atrás das velozes camisetas verde-bandeira viam-se gigantescas prateleiras onde torres de partes de baixo e partes de cima encontravam-se classificadas pelas dolorosas letrinhas P, M e G. Com alguma atenção o observador poderia ainda encontrar algum resquício da divisão clássica e sempre funcional do tipo “por modelo”. No balcão, as clientes histericamente debruçadas remexiam as coloridas pilhas de lycra enquanto seus adoráveis filhos corriam felizes por entre cestinhas de plástico e vendedoras e prateleiras e lycra (meu Deus, quanta lycra!). O emaranhado de vozes não permitia nenhum tipo de conversação civilizada. Era um tal de tem de cortininha dessa cor? ou não tem dessa só que mais clara? eu quero uma cor assim sabe... mais alegre! mãe, mãe, mãe! compra pra mim! será que a tia usa uma saída dessa estampa? Mocinha, tem alguém aqui para me atender? ah não acredito que não tem mais desse shortinho! Sério? Procura pra mim...

Bravamente e com sua objetividade de caçadora ela comprou o que tinha que comprar e saiu para rua aliviada. Ao respirar o ar poluído da tranquilidade que precede a virada ela ainda deu uma olhada para trás e pensou:

- Jesus, quanta mulher feia!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Meus desejos de Natal e de Ano Novo

Que hoje e sempre o Amor de Cristo ou de Marx ou do São João da Física Quântica (tanto faz, qualquer Amor merece respeito) seja presente e palpável,

Que a saudade seja, antes de tudo, uma boa companheira,

Que aqueles para quem eu não liguei o ano inteiro estejam bem sem mim e saibam que a vida é assim mesmo, na maior parte do tempo a gente fica engolindo sapo e apagando incêndio e tentando sobreviver, e no tempo que sobra a gente lamenta não ter energia para alegrar a vida de mais ninguém,

Que aqueles que estiveram do meu lado tenham pelo menos uma lembrança boa que justifique continuarem do meu lado porque eu não sou de ferro e, sim, juro, preciso de vocês,

Que aquela em quem eu não votei tenha uma índole muito melhor do que eu imagino porque, admito, às vezes eu torço para estar errada,

Que eu leia a algum livro que seja bom demais e que mude minha vida (interior, lógico) e que eu, em algum momento, consiga escrever alguma coisa que EU ache que realmente preste,

Que a gente sempre enxergue e saiba rir do absurdo do dia a dia e, sobretudo, resista às tentações diabólicas de contar calorias, dividir em 12 vezes ou bater boca no trânsito,

Que a gente só erre quando estiver tentando acertar,

E que a gente tome vergonha nessa cara lavada e crie alguma coragem para (DE VEZ EM QUANDO, CARALHO!) acertar!

Feliz Natal a todos!

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Numa garagem no ano de 2092

- Mano, tu tá há horas na frente dessa tela. Bora lá, véio. O que tem aí de tão irado?

- Bicho, achei um treco das antigas, tipo pré-histórico mesmo. Sabe aquela tal de NET que o professor falou? Do começo desse milênio e tal... então... achei aqui embaixo de tudo, fui baixando nos níveis, desbaratinando as tramas, desliguei uns rastreadores e cheguei no tal www. Você vai desacreditar nisso aqui. Acho que essa deve ter sido uma das primeiras redes sociais do mundo, tipo jurááássico mano, olha o display!

- Cara, tem umas línguas mortas aí misturadas, esse treco tá linkado, melhor não mexer...

- Véio, as fotos são iradas, olha as roupas dos caras! A mulherada então, é surreal... Cê não tem noção...

- Mano, sério, neguinho vai te detectar, fica esperto aí! Em três tempos os xerifes estão batendo nessa porta. Isso é crime, maluco! Não pode mais! Deve ter motivo para isso estar tão enterrado. Melhor ficar na superfície. Eu tô caindo fora.

- Deixa de ser bundão, bro! Eu tô esperto, tô cronometrando, não pega nada, tô no relógio aqui. Senta aí.

- Qual a velô?

- É veio, né mano: cinco segundos por janela, intervalo a cada oito cliques para ficar fora da patrulha. Trabalho, cerveja, trabalho, xixi... rola um ritmo.

- Três tá bom, né? Você acha que rola ligar o meu em rede?

- Desliga o grilo, mas só no descanso para não dar bandeira... hmm, hehe, já tá... Pensa o que?

- Belê, o que mesmo que a gente tá procurando?

- Que tal o seu avô? Aquele véio doido devia estar por aí desde os primórdios...

- Faz assim, tenta a bisa primeiro...

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Delivery

A colisão ocorreu no único cruzamento da cidade, bem na frente delas duas, um carro e uma moto. Madrugada, duas rindo, lua baixa, um pouquinho de quase nada. Refrescava. Algumas horas antes alguém havia decidido por uma festa. No verão escorre gente mirante a baixo, mas esse tempo de agora era a temporada dos de sempre. Telefonemas e palmas na porta agitavam os convidados. A adição de líquidos e sólidos é colaboração obrigatória para com o anfitrião. O delivery, o único que funciona na cidade, havia sido acionado para substâncias específicas. Entretanto, um lance que envolvera uma rede e uma moça situados próximos ao mangue havia causado um atraso sem precedentes. A festa não atrasou. O álcool era bom e todos precisavam risadas e de férias de solidão. Pouco antes da garoa já o delivery era esquecido. Tardando minguou.

Saciadas de gente, caminhavam e riam tão sozinhas de dar dó. Fora as duas, noite morta de Bandeira até quase muito longe, só cigarras. O novo amigo oferecera carona e elas haviam apenas rido ainda mais. Descabido esse novo moço na praça. Ninguém. Breu. Garoava e elas rindo. Atravessaram o quadrado, a beirada do pé raspando o orvalho, rindo, às vezes chorando só um pouquinho. Caminho alongado e já já estavam na rua. Ali, no único cruzamento da cidade. Um carro e uma moto de delivery.

O atrasado amassou o capô com as escápulas e ainda caiu todo em pé, caiçara e encarando. O novo na praça mencionou o farol quebrado. Ao longe a festa miava. As risadas femininas chacolharam os motoristas e acordaram todos os dois cachorros que dormiam na redondeza. Nada! Ninguém! Só o acidente, um carro e uma moto, bem na frente delas! Delivery!