quarta-feira, 29 de setembro de 2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pedaço de texto

À primeira vista era nojo mesmo, instintivo, visceral, nojo imediato, até que a curiosidade com suas oito pernas inventou de coçar-me. Nas páginas soltas do código moral de bolso que consultamos só quando os apuros são maiores eu procurava o procedimento padrão correspondente ao caso. Uma pessoa como eu não deve arriscar ultrapassagens indevidas nas fronteiras alheias, sou contra invasões. Mas por outro lado, uma situação inusitada, fora de hora e nojenta como essa pede um senso de critério e justiça que muitas vezes guardamos enferrujado. Sem querer, me peguei imaginando o que ela teria dito se ainda estivesse aqui, nessa casa, nesse mundo, se ainda estivesse disponível para surpresas que mesmo nojentas, levantam a poeira cósmica que a gente deposita no sótão e no porão.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sobre a velha


Atendo o celular - Xu, é o seguinte (rindo), vou passar o celular para a Carlinha e você vai falar seu email para ela. Depois, te explico.
Acho que o pedido é facilmente executável, mas me intriga o número e o nome desconhecidos.
Oi Jane - diz a voz desconhecida - tudo bom?
Respondo que sim e passo meu email.

Duas horas depois, o celular fala MAE com aquela voz robótica bizarra. Atendo - Pode me explicar agora? - Ela ri - Eles quiseram tirar foto de mim, fazendo a invertida. Vão te enviar por email. - Eu penso - Meu Deus, 74!

Sabe do pior? Ela faz direitinho.

sábado, 18 de setembro de 2010

Sankay Juku


Havia ido lá justamente para isso. Queria dar mais uma espiada, perceber melhor. Sentia-se consciente de suas limitações desde que a sua ignorância, sua pessoal e intransferível ignorância, havia caído em seu colo naquela noite de 2007, naquele mesmo teatro. Essa mesma ignorância havia sido aceita como um presente e dela até havia sido tirada alguma paz. Mas os anos foram difíceis, a lama até o pescoço e a borboleta enjaulada na cabeça girava sem parar. De que maneira aqueles japoneses haviam feito isso ela não sabia. Movimentos mínimos e talco não explicariam nem de longe o choque ou o choro. Uma porta interna, anterior e eterna havia sido aberta por um instante e a borboleta ainda conservava nas asas incrustado seu aroma. A alegria de entender e a frustração de esquecer conviviam lado a lado. Ela sabia que seria só mais um instante e assim inevitavelmente foi. Ela percebeu num segundo suspenso que aquele velho japonês estava mais vivo do que ela jamais algum dia poderia chegar a estar. Vivo, que até ontem era uma palavra sem meios-termos, vivo demais! Conectado com que o que está embaixo e com o que está atrás, ele fazia parte do eterno, do Big Bang, do sempre e estava ali, presenteando-a com um cartão postal. Ele sabia ser inteiramente, só isso. Ela trêmula, abraçada a sua ignorância como em um ursinho, retornou alterada para o mundo de concreto. Encarou a avenida como os cachorros de madame encaram seus sapatinhos coloridos. Estava por demais ocupada em perceber a própria respiração.

(imagem de Jacques Denarnaud)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

The jungle

For a monkey with an oversized brain, abstraction is a curse.

sábado, 11 de setembro de 2010

Por? Para? Língua e voz...

A cantora americana afinadíssima, fluente em francês, lutando com a língua portuguesa:

- Essa cançao foi feita... por... para... mim?

Risadas.

- Por... para... isso é muuuito difícil!

Fofa.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A primeira vez que eu te vi...


Faz tempo, talvez tenha sido em outra vida, mas eu lembro bem. Perdida naquele fim de mundo da vila num dia vazio, talvez fim de semestre, conversava eu com duas das pessoas menos interessantes do planeta: professorão e professorinha. Professorão me dizia que só via filmes dublados por preguiça de ler as legendas. Professorinha me contava de sua mãe que vendia Avon. Eu já pensava em suicídio quando você chegou. Não me lembro de ter te visto antes, acho que essa foi mesmo a primeira vez. De preto, camiseta de caveira, cabelo grisalho quase raspado, pequena, séria e brava. Resmungando. Sentou na ponta daquela mesa ali na abominável praça de refeições e desabafou:
“Puta que o pariu! Quando eu escolhi essa profissão eu achava que iria conviver com pessoas bacanas, inteligentes, interessantes... agora estou aqui tendo que aguentar essa gente feia e tacanha!”
Eu estava salva! Alguém me entendia! Você, criatura, só você...


Feliz aniversário, querida!

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Se fizesse diferença...

Se fizesse diferença eu vestiria uma roupa nova, bem bonita e macia, usaria os melhores perfumes e os melhores cremes, faria uma maquiagem cuidadosa, de efeito, perfeita para esse dia, para essa hora, para esse evento... arrumaria meu cabelo com produtos perfumados, ficaria horas com o secador até que cada fio estivesse no exato lugar planejado com aquele aspecto de que eu simplesmente nasci assim... encontraria o brinco mais bonito do tamanho perfeito para valorizar o meu rosto, escolheria um sapato que me deixasse alta e longilínea, que me fizesse poderosa e, ao mesmo tempo, delicada... pesquisaria o esmalte perfeito para combinar com a roupa perfeita, sem ofuscar nenhum dos outros milhares de detalhes aos quais eu me dedicaria devotamente, inteiramente, obsessivamente. Se fizesse diferença... Não faz.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Aquela gente

Para elas - teatro é romance,
Para eles - teatro é comédia,

Para elas - cabelo é chapinha,
Para eles - cabelo é rédea,

Para elas - família é administração,
Para eles - família é tragédia,

Para elas - terapia é "básico",
Para eles - terapia é televisão,

Para elas - dinheiro é salto,
Para eles - dinheiro é carrão,

Para elas - sonho é manchete,
Para eles - sonho é botão,

Caretas com roupa de puta,
Modernos que moram com a mãe.