quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Descida ao inferno (esse velho tema épico)

O sofrido Natal já era passado e aquela semana de bônus de fim de dezembro parecia ao mesmo tempo longa e curta demais. Constatou com alguma amargura e nenhuma surpresa que os trajes de banho arquivados desde o último verão já não eram mais os mesmos. O tempo é implacável. Haviam envelhecido no fundo da gaveta, sozinhos. Não haveria para ela nenhuma escapatória: deveria quebrar seu delicioso momento de ócio pouco criativo e enfrentar o trânsito esquisitamente calmo para obter algumas peças fundamentais para as iminentes e merecidas férias. Respirou fundo e foi.

A confusão manobrística estabelecida na porta do local já prenunciava aquele clima agressivo do consumismo feminino que só os bastidores de fashion week podem de longe às vezes mimetizar. Entrou logo, sem muito pensar. O âmago da loja abrigava no mínimo três dezenas de mulheres de idades variadas unidas e ao mesmo tempo separadas por um único objetivo: enfrentar dignamente o campo de batalha arenoso que geralmente chamamos de praia. As camisetas verde-bandeira facilitavam a identificação das vendedoras que atendiam clientes múltiplas com a mesma atenção que os mergulhadores de snorkel dedicam aos peixinhos prateados dos cardumes. Atrás das velozes camisetas verde-bandeira viam-se gigantescas prateleiras onde torres de partes de baixo e partes de cima encontravam-se classificadas pelas dolorosas letrinhas P, M e G. Com alguma atenção o observador poderia ainda encontrar algum resquício da divisão clássica e sempre funcional do tipo “por modelo”. No balcão, as clientes histericamente debruçadas remexiam as coloridas pilhas de lycra enquanto seus adoráveis filhos corriam felizes por entre cestinhas de plástico e vendedoras e prateleiras e lycra (meu Deus, quanta lycra!). O emaranhado de vozes não permitia nenhum tipo de conversação civilizada. Era um tal de tem de cortininha dessa cor? ou não tem dessa só que mais clara? eu quero uma cor assim sabe... mais alegre! mãe, mãe, mãe! compra pra mim! será que a tia usa uma saída dessa estampa? Mocinha, tem alguém aqui para me atender? ah não acredito que não tem mais desse shortinho! Sério? Procura pra mim...

Bravamente e com sua objetividade de caçadora ela comprou o que tinha que comprar e saiu para rua aliviada. Ao respirar o ar poluído da tranquilidade que precede a virada ela ainda deu uma olhada para trás e pensou:

- Jesus, quanta mulher feia!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Meus desejos de Natal e de Ano Novo

Que hoje e sempre o Amor de Cristo ou de Marx ou do São João da Física Quântica (tanto faz, qualquer Amor merece respeito) seja presente e palpável,

Que a saudade seja, antes de tudo, uma boa companheira,

Que aqueles para quem eu não liguei o ano inteiro estejam bem sem mim e saibam que a vida é assim mesmo, na maior parte do tempo a gente fica engolindo sapo e apagando incêndio e tentando sobreviver, e no tempo que sobra a gente lamenta não ter energia para alegrar a vida de mais ninguém,

Que aqueles que estiveram do meu lado tenham pelo menos uma lembrança boa que justifique continuarem do meu lado porque eu não sou de ferro e, sim, juro, preciso de vocês,

Que aquela em quem eu não votei tenha uma índole muito melhor do que eu imagino porque, admito, às vezes eu torço para estar errada,

Que eu leia a algum livro que seja bom demais e que mude minha vida (interior, lógico) e que eu, em algum momento, consiga escrever alguma coisa que EU ache que realmente preste,

Que a gente sempre enxergue e saiba rir do absurdo do dia a dia e, sobretudo, resista às tentações diabólicas de contar calorias, dividir em 12 vezes ou bater boca no trânsito,

Que a gente só erre quando estiver tentando acertar,

E que a gente tome vergonha nessa cara lavada e crie alguma coragem para (DE VEZ EM QUANDO, CARALHO!) acertar!

Feliz Natal a todos!

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Numa garagem no ano de 2092

- Mano, tu tá há horas na frente dessa tela. Bora lá, véio. O que tem aí de tão irado?

- Bicho, achei um treco das antigas, tipo pré-histórico mesmo. Sabe aquela tal de NET que o professor falou? Do começo desse milênio e tal... então... achei aqui embaixo de tudo, fui baixando nos níveis, desbaratinando as tramas, desliguei uns rastreadores e cheguei no tal www. Você vai desacreditar nisso aqui. Acho que essa deve ter sido uma das primeiras redes sociais do mundo, tipo jurááássico mano, olha o display!

- Cara, tem umas línguas mortas aí misturadas, esse treco tá linkado, melhor não mexer...

- Véio, as fotos são iradas, olha as roupas dos caras! A mulherada então, é surreal... Cê não tem noção...

- Mano, sério, neguinho vai te detectar, fica esperto aí! Em três tempos os xerifes estão batendo nessa porta. Isso é crime, maluco! Não pode mais! Deve ter motivo para isso estar tão enterrado. Melhor ficar na superfície. Eu tô caindo fora.

- Deixa de ser bundão, bro! Eu tô esperto, tô cronometrando, não pega nada, tô no relógio aqui. Senta aí.

- Qual a velô?

- É veio, né mano: cinco segundos por janela, intervalo a cada oito cliques para ficar fora da patrulha. Trabalho, cerveja, trabalho, xixi... rola um ritmo.

- Três tá bom, né? Você acha que rola ligar o meu em rede?

- Desliga o grilo, mas só no descanso para não dar bandeira... hmm, hehe, já tá... Pensa o que?

- Belê, o que mesmo que a gente tá procurando?

- Que tal o seu avô? Aquele véio doido devia estar por aí desde os primórdios...

- Faz assim, tenta a bisa primeiro...

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Delivery

A colisão ocorreu no único cruzamento da cidade, bem na frente delas duas, um carro e uma moto. Madrugada, duas rindo, lua baixa, um pouquinho de quase nada. Refrescava. Algumas horas antes alguém havia decidido por uma festa. No verão escorre gente mirante a baixo, mas esse tempo de agora era a temporada dos de sempre. Telefonemas e palmas na porta agitavam os convidados. A adição de líquidos e sólidos é colaboração obrigatória para com o anfitrião. O delivery, o único que funciona na cidade, havia sido acionado para substâncias específicas. Entretanto, um lance que envolvera uma rede e uma moça situados próximos ao mangue havia causado um atraso sem precedentes. A festa não atrasou. O álcool era bom e todos precisavam risadas e de férias de solidão. Pouco antes da garoa já o delivery era esquecido. Tardando minguou.

Saciadas de gente, caminhavam e riam tão sozinhas de dar dó. Fora as duas, noite morta de Bandeira até quase muito longe, só cigarras. O novo amigo oferecera carona e elas haviam apenas rido ainda mais. Descabido esse novo moço na praça. Ninguém. Breu. Garoava e elas rindo. Atravessaram o quadrado, a beirada do pé raspando o orvalho, rindo, às vezes chorando só um pouquinho. Caminho alongado e já já estavam na rua. Ali, no único cruzamento da cidade. Um carro e uma moto de delivery.

O atrasado amassou o capô com as escápulas e ainda caiu todo em pé, caiçara e encarando. O novo na praça mencionou o farol quebrado. Ao longe a festa miava. As risadas femininas chacolharam os motoristas e acordaram todos os dois cachorros que dormiam na redondeza. Nada! Ninguém! Só o acidente, um carro e uma moto, bem na frente delas! Delivery!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O Terceiro domingo (dezembro de 2009)

Um sonho que tive e que alguém sensível, na época, me disse que anotasse:



Ela estava linda, ótima, de rosa claro tipo pijaminha sentada com as pernas cruzadas sobre uma cama branca, alta, enorme. Havia um altar.



Tive a impressão que estávamos todos nós, nós, nós ali em volta. Eu não nos via. Só ela. Sua voz era tranquila, didática, carinhosa, mas ao mesmo tempo um pouco dura, assertiva:



“Eu amo vocês e tenho muito que falar com vocês, mas eu tenho um compromisso, eu preciso ir. Tenho apenas mais dois dias...”



E eu lembro de no sonho pensar... “Por que dois dias?”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Atenas

Último dia da primeira escala. Predinhos de quatro ou seis andares, bichas lindas borboleteando, guardas lindos de cinema (até os de trânsito), o sol refletindo nos ornamentos jônicos, dóricos e coríntios no meio de taxis amarelos, por onde toda comida contém berinjela. Você sempre pode ver as pontas das colunas do Templo de Zeus, imenso, destruíto, no meio, de qualquer lado. Relevos de toda ordem e modelo, queijo feta, tudo branco, branco. As Cariátides de lindos vestidos, com seus cabelinhos de trancinhas e sem braços, ali, só sendo lindas e mais nada. Ali desde muito tempo. A crise aparece, limita bairros bons, bairros ruins, mas tem um clima de será, e agora?, meio que esperando uma dica para dar o próximo passo. Percorremos, aprendemos, comemos. Não dá para saber ao certo. Acabou o tempo, taxi para o hotel e avião, uma surpresa do lado esquerdo. Num muro imenso vemos traços conhecidos, uma coisa esquisita tipo labirintite, onde estamos mesmo? Os Gêmeos e Nina Pandolfo haviam passado por ali.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Meu eterno romântico

Se ele estivesse aí, haveria música, uísque e um bom livro. Ele saberia os resultados dos esportes e torceria pelo time rival se, por acaso, o time rival representasse o Brasil em algum desses campeonatos que, depois dele, me parecem tão sem sentido. Se a gente estivesse aí, ele desapareceria como mágica no meio da refeição e gata dormiria em seu colo sempre que ele estivesse na poltrona. Se ele estivesse por aí, pouco ouviríamos da sua voz, mas no ar haveria música e essa música, com certeza, cantaria o amor.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Kiprocó no metrô


A aluna bonitinha de caderno cor-de-rosa, aquela mesma que sentava na frente e anotava tudo com canetas multicolores e que o namorado bonitinho buscava pontualmente depois da aula, chegou naquele dia esbaforida e escalavrada. Aconteceu que havia sofrido um turbulento quase assalto no terminal do metrô. Uma baranga vigarista de unhas azuis e barriga de fora havia tentado roubar em meio ao mar de gente seu celular cor-de-rosa. Atracaram-se a bonitinha e a baranga na boca da escada que rolou vazia por quase um minuto inteiro entre as 18h31 e as 18h32 de uma quarta-feira pela primeira vez desde 1985, para deleite dos trabalhadores cansados e estudantes passivos que desembarcavam naquele momento único do terminal Barra Funda. O bate-boca inicial durou pouco, mas o suficiente para que elementos variados do público bem posicionado garantisse o up-load do dia seguinte daquele barraco para o mundo youtubiano. Em segundos estabeleceu-se um show de arranhões e decotes entre as duas cores distintas de cabelos alisados. O público estava dividido, alguns torciam para a bonitinha e outros para a baranga, de acordo com os processos misteriosos de identificação pessoal. Um grupo de adolescentes tentou puxar um grito de “beija! beija!”, mas não pegou. A bonitinha mostrou-se mais ágil do que o esperado e, mesmo de salto fino, conseguiu rapidamente derrubar a bolsa plastificada da baranga de onde foram cuspidos oito moderníssimos telefones celulares, dois iPODs e mais um aparelho eletrônico que a narradora tecnologicamente atrasada não seria capaz de nomear. Uma senhorinha minúscula gritava “o meu é o brubérri!”. Só nesse momento específico, após o vazamento de eletrônicos, foi que o segurança resolveu participar. Pensou em intervir antes, mas lembrando-se do último domingo de Páscoa na qual havia aprendido na prática a não se meter em briga de mulher, conteve-se. Algumas coisas são sagradas, principalmente quando aprendidas em dias sagrados. A bonitinha resgatou de imediato seu super aparelhodesomcalculadoragendamaquinafotograficaquemandamensagens cor-de-rosa (que às vezes também até faz ligação), consertou o decote e bravamente partiu para a faculdade com a saia meio torta. A baranga já havia desaparecido antes mesmo do decote da outra voltar ao lugar. Já na sala de aula, em meio ao apoio moral de colegas indignados, a bonitinha ainda ofegante resolveu avaliar o estrago material. Aconteceu que, para a surpresa de todos, na sua bolsa cor-de-rosa a bonitinha encontrou dois aparelhos idênticos de telefonia celular, ambos cor-de-rosa.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Festas...

Da série, pequenos prazeres...
A vida judia, a gente acostuma, aprende a gostar. Na adolescência era um sufoco obrigatório mas, pensando bem aqui de longe, tudo na adolescência foi um grande drama visceral e a vida social não poderia ser diferente. Com anos, desencantos e a prática, a brincadeira foi ficando cada vez mais interessante, fonte de pesquisa, diversão de voyeur, até virar um hobby um tanto cruel. Ando sem treino, curtindo outra vida, mas acho que é como andar de bicicleta. A última festa na qual estive foi assim. Como era de costume, a posição estratégica e inofensiva de amiga de uma convidada facilitou o movimento. Logo após as apresentações obrigatórias, passei pela cozinha, já de olho na espetacular área externa, que só não é melhor do que uma boa biblioteca, e que naquele dia, era mais do que o necessário. Fetiches a parte, era noite de lua, daquela que mexe com a água interna como se fosse maré e faz a cabeça virar mar. Nas ondas do caminho, o olhar e a pergunta - oi, tudo bom? um drink? – Uns três segundos de olhar segurado só pra incomodar um pouco mais sempre garantiram o bom resultado. Sorri – desculpe, mas não bebo – e aguardei o abandono de cena, já previsto e apreciado. A maré levou. Roubei uma água com gás e deslizei incógnita por entre os convivas a degustar meu puro e calculado isolamento, ainda sentindo o gosto de travessura colado na língua. Olhar externo, ângulo interno. Melhor que TV.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Lama minha

A tristeza física pesa demais no peito, embaça demais a vista e distorce tudo que a gente pensa ser o mundo. É ver só o negro da lua e apagar as estrelas sem consideração. Não se sai sozinho desse buraco. O amor não salva mas, enquanto vida, justifica-a.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Eleita

Ela ganhou e eu sei lá o que vem por aí. Não acredito em nada desses projetos de campanha e acho que qualquer partido ou pessoa tem seu lado perigoso. Não sei bem o que esperar e, realmente, preferia saber. Pelo menos a democracia me garante o direito inalienável de reclamar de cada um dos tempos presentes que eu tenho a chance de vivenciar. O futuro nunca chega mesmo, deve ser uma lei universal. Mas votar em quem perde não deixa de ser um pequeno luxo, pois mantém o pessimismo nosso de cada dia na categoria "coerente". Bons próximos quatro anos a todos...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Começa assim, de repente, sem aviso.

Desde então, desde quando meus amores começaram a vazar do mundo concreto e se instalar no mundo da abstração, eu durmo invertida igual morcego. Átridas modernos. Todos. É como se aquele episódio definitivo, que antes era só palavra, tivesse virado elefante. Entra assim, em modo contínuo, como corda que escorrega pelas mãos. Elas sangram. Somos irrelevantes. Todos, claro. Mas agora mesmo eu estou só pensando em mim mesma, nessa coisa de amor que escorre e vaza. Meus queridos de antes, imensos como a lua, claros e escuros como a lua. Mas a lua sempre vem, sempre volta, e eles já foram, mas nunca foram. Nunca vão, mas não estão. A ausência é concreta, ocupa espaço, circula pela casa, te empurra da cama. Te lambe. Fica sempre por aí, no ar, no chão. A ausência nunca te esquece. Nunca me esquece.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Eu amo a minha celulite!

Eu não conto mais calorias e já aprendi com a vida que três quilos a mais ou a menos não fazem a menor diferença. Mesmo. O prazer sim, esse faz uma diferença enorme. Adoçante para mim é veneno e já decidi que eu não mereço viver sem manteiga. Eu não corro, não nado, não me peso e não sofro mais por isso. Acho mais fácil viver sem carro do que sem pizza e não me venha com iogurte de sobremesa porque isso eu considero uma ofensa. Gosto de sorvete com calda, daquela que escorre e mela os dedos, a mesa e o sangue. Gosto das coisas que alimentam os sentidos, comida com cheiro, comida que convida. Na verdade, devo confessar que eu amo a minha celulite. Simplesmente amo. Minha celulite é uma marca de feminilidade de design absolutamente exclusivo. Ela é totalmente orgânica, e além do mais, não para de evoluir! A minha celulite tem um movimento, uma malemolência, uma coisa meio ancestral, temperada em baixo relevo, meio malandra até. Minha celulite não freqüenta academia. Minha celulite dança. Ela é uma celulite totalmente brasileira e também por isso, merece respeito. Além disso, ela é minha e sempre será, fui eu que fiz, fui eu que esculpi. Agora, se você não gosta da sua, por favor, não me encha o saco!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

The move

I went there because I needed something and I knew I deserved it, but somehow… I didn’t get it. I got something else. Something different that felt like... disappearing, like a carpet or a ray of light, as if it never existed, like something invented, but never ever unexpected. Maybe this was the huuuge gap. Wrong foot, wrong strategy, wrong love.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A cidade

Essa concha está me sufocando que nem comida demais na boca. Eu preciso ouvir os passarinhos de novo, Deus, como eu preciso dos passarinhos. Aviões e alarmes ainda podem me matar. O pó preto no pulmão é só um detalhe.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ID (Attention! This is not a metaphor.)


No meio do caminho tinha uma caranguejeira. Gelei. Se considerar os dois semestres inteiros de aulas de INVER toda sexta à noite naquele laboratório que a gente chamava de AQUÁRIO porque ficava em frente à entrada do CA e de onde, através de janelas enormes, nós assistíamos o desfile do pessoal já com a cerveja na mão, se considerar que eu havia estudado muito, a conclusão é que eu deveria saber das qualidades das caranguejeiras de serem peludas, horrendas e pouquíssimo agressivas. Mesmo assim, naquela noite quente sem lua no sul do México, uma menina mimada eu virei. Pavor. Situemo-nos.
Viajava eu sozinha pela rota maia, cruzaria a fronteira entre Chiapas e a Guatemala no dia seguinte numa canoinha ridícula através de um rio marrom para visitar cidades perdidas e vulcões dormentes e ali, mesmo dentro de um hotel, uma versão extra-large da úmida mata Atlântica erguia-se all around. Voltava do jantar. Estávamos a sós, a aranha e eu mesma, cara a cara, nem mais nem menos. Travei. O caminho era estreito, mas era só dar mais um passinho, meio grande, por cima dela, e continuar até chegar no meu quarto-bangalô. Nunca conseguiria. Viajar sozinha e me embrenhar na selva no meio da América Latina, tudo bem, super normal, mas aproximar-me daquele invertebrado pré-histórico (hífen sim, hífen não, hífen sim,... cada vez uma margarida...) era algo que minha natureza mais primitiva, primitivíssima ali em Chiapas, considerava impensável. Medo instintivo, hoje em dia, é uma emoção para poucos. Talvez fosse privilégio. Nem se pensa nisso. Mas ele está lá, naquele pedacinho medular e misterioso na raiz do cérebro, naquela parte homóloga ao cérebro da sua cachorra, lá está ele, com seu interruptor pronto para ser acionado. Minha cachorra sim, me entenderia, mas ela não estava ali. Em compensação, as árvores monumentais eram verdadeiras presenças e pareciam se divertir. Qualquer criança maia teria rido muito de mim. Mas era só eu a as duas naturezas, a de dentro e a de fora.
A sinfonia de cigarras era constante e ensurdecedora e só cessava em fade out de quando em quando, quando o céu pesado preparava para despencar mais uma das duchas niágara que desapareciam tão rápido quanto chegavam. Mesmo nesses segundos que precediam a chuva, não havia silêncio. As cigarras davam lugar aos macacos machos que urravam e balançavam galhos para chamar suas famílias como se fosse o fim do mundo. Eu pensava: e se as cigarras sumissem, será que os macacos saberiam quando urrar? De qualquer maneira, os minutos passavam e a aranha lá, empacada. Era evidente que aquela invertebrada específica não equivalia à caranguejeira que morava no pequeno aquário do instituto biológico. O mundo se invertia e ali a estranha era eu. Acho que ela deve ter me olhado de cima a baixo, estranhando. Eu teria, se fosse ela. Afinal, ali era o bairro e a rua da caranguejeira e eu, forasteira, queria passar! A civilização é mesmo biologicamente muito besta. Talvez aquelas civilizações mortas e violentadas que haviam habitado aquele lugar antes da Europa começar a vazar, talvez elas fossem mais normais. Eu confesso que no meu momento mulherzinha da cidade mudei de rumo, dei uma volta imensa por outra trilha até chegar no meu quarto-bunker embalado em telas por todos os lados, pelo outro lado. Antes de entrar, olhei para a trilha e vi que ela estava lá ainda, existindo ali no meio do caminho. Foi a última vez que nos vimos. No outro dia de manhã, ao despertar e abrir a porta da frente, não encontrei mais minha imponente anfitriã.

sábado, 16 de outubro de 2010

Perder

Eu queria me perder, desprender, desamarrar a canoa e a alma e abraçar a sereia, cantar junto da água, navegar sem ir, dar um passo sem perder o chão, perder um tanto de tento, um tanto cheio, tanto quanto tudo que pode encher, transbordado e com cheiro, mas não tanto até estiar. Perder amando, como se só isso fosse marcar, fosse justificar, fosse ser. Amar como última amarra. Sagrada. Amar.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O inominável

Ficar sozinha naquela casa nova, imensa, estranha, tendo que conviver intensamente comigo mesma já era, por si só, enlouquecedor. Meus medos, meus erros, minhas inabilidades, perambulavam como fantasmas. Era um excesso de eu mesma absolutamente contraproducente. Elaborava, por distração e meio sem querer, fantasias infantis de coisas inesperadas. Qualquer coisa que acontecesse poderia, eu achava, tirar-me daquela auto-reflexão forçada e cruel. Nessa altura do campeonato, depois de encarar tanta realidade, eu já deveria ter aprendido que o Destino é um bicho que não vale nada. Você quer surpresa? Aí está, Maria Clara, deal with it! E estava mesmo! Ali, na minha casa nova, na minha almofada de onça, algo entre sentado e deitado, mas de qualquer maneira, parecendo estar confortavelmente instalado, ele, o inominável. Nenhuma coleira com identificação (o que, na minha opinião, deveria ser obrigatório!) indicava quem era seu dono. Simplesmente me olhava.

O que senti de imediato foi nojo, instintivo e visceral, nojo mesmo. Talvez por isso, a Curiosidade com suas oito pernas peludas tenha se demorado alguns minutos. Por fim, veio coçar-me. Meio desconcertada, tive que procurar nas páginas soltas daquele código moral de bolso que consultamos só quando os apuros são realmente respeitáveis o procedimento padrão correspondente ao caso. Aquilo não me pertencia, não podia me pertencer e, afinal de contas, uma pessoa como eu não arrisca ultrapassagens indevidas nas fronteiras alheias. Sou firmemente contra as invasões. Por outro lado, é importante lembrar que uma situação inusitada, fora de hora e nojenta como essa pede um senso de critério e justiça pessoal que muitas vezes encontra-se emperrado ou enferrujado. No susto, me peguei imaginando o que ela teria dito se ainda estivesse aqui, nessa casa, nesse mundo, se ainda estivesse disponível para algum tipo de surpresa. Queria que a ajuda viesse dela. Ninguém mais me entenderia, ninguém mais saberia valorizar a oportunidade nojenta, eu sei, mas ainda assim uma oportunidade singular de mudar os paradigmas que regem as tomadas de decisão de esposas fracassadas e donas de casa sem talento. Não só eu, mas todo o segmento precisava da opinião dela. Entretanto, ela já não estava mais e essa linha de pensamentos só serviu para aumentar minha carga de responsabilidade perante, bem, como direi, aquilo. Pelo menos, aquilo estava quieto. Pensei com arrependimento nos livros de auto-ajuda que eu comprei e não li. Talvez algum deles tivesse alguma dica, alguma idéia mesmo que vaga de como proceder quando o inesperado ousa em se materializar. Fiquei ali, durante algum tempo, pensando essas inutilidades e devolvendo aquele olhar.

Quando dei por mim, já escurecia. Só uma monga como eu poderia passar o dia e depois a noite ali, sentada, entre o nojo e a indecisão. Não, a noite é diferente, a noite eu não suportaria. O meu rotineiro e infantil medo do escuro aumentou de tal maneira a minha aflição que eu senti que finalmente toda a poeira cósmica depositada tanto no sótão como no porão da minha mente havia formado redemoinhos. Depois de tanto nada, aquela adrenalina no sangue pareceu ter vindo dos melhores traficantes. A coragem e a clareza brotaram do fundo meus instintos mais basais. Lembrei dela novamente, e da sua inseparável máquina fotográfica que agora era minha e dormia continuamente na gaveta da cômoda em cima dos álbuns de scrapbook que ela havia tão carinhosamente montado. Acho que foi aquele pedaço concreto dela, da minha querida, que me tirou daquela abstração idiota e me lembrou da urgência fundamental. Ela me fez agir. Vinte minutos depois, já no táxi rindo como uma louca, depois de deixar aquela casa abismal para todo o sempre com uma pequena mochilinha nas costas, eu ainda não sabia do incrível prêmio de fotografia que o registro daquele dia me faria ganhar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pedaço de texto

À primeira vista era nojo mesmo, instintivo, visceral, nojo imediato, até que a curiosidade com suas oito pernas inventou de coçar-me. Nas páginas soltas do código moral de bolso que consultamos só quando os apuros são maiores eu procurava o procedimento padrão correspondente ao caso. Uma pessoa como eu não deve arriscar ultrapassagens indevidas nas fronteiras alheias, sou contra invasões. Mas por outro lado, uma situação inusitada, fora de hora e nojenta como essa pede um senso de critério e justiça que muitas vezes guardamos enferrujado. Sem querer, me peguei imaginando o que ela teria dito se ainda estivesse aqui, nessa casa, nesse mundo, se ainda estivesse disponível para surpresas que mesmo nojentas, levantam a poeira cósmica que a gente deposita no sótão e no porão.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sobre a velha


Atendo o celular - Xu, é o seguinte (rindo), vou passar o celular para a Carlinha e você vai falar seu email para ela. Depois, te explico.
Acho que o pedido é facilmente executável, mas me intriga o número e o nome desconhecidos.
Oi Jane - diz a voz desconhecida - tudo bom?
Respondo que sim e passo meu email.

Duas horas depois, o celular fala MAE com aquela voz robótica bizarra. Atendo - Pode me explicar agora? - Ela ri - Eles quiseram tirar foto de mim, fazendo a invertida. Vão te enviar por email. - Eu penso - Meu Deus, 74!

Sabe do pior? Ela faz direitinho.

sábado, 18 de setembro de 2010

Sankay Juku


Havia ido lá justamente para isso. Queria dar mais uma espiada, perceber melhor. Sentia-se consciente de suas limitações desde que a sua ignorância, sua pessoal e intransferível ignorância, havia caído em seu colo naquela noite de 2007, naquele mesmo teatro. Essa mesma ignorância havia sido aceita como um presente e dela até havia sido tirada alguma paz. Mas os anos foram difíceis, a lama até o pescoço e a borboleta enjaulada na cabeça girava sem parar. De que maneira aqueles japoneses haviam feito isso ela não sabia. Movimentos mínimos e talco não explicariam nem de longe o choque ou o choro. Uma porta interna, anterior e eterna havia sido aberta por um instante e a borboleta ainda conservava nas asas incrustado seu aroma. A alegria de entender e a frustração de esquecer conviviam lado a lado. Ela sabia que seria só mais um instante e assim inevitavelmente foi. Ela percebeu num segundo suspenso que aquele velho japonês estava mais vivo do que ela jamais algum dia poderia chegar a estar. Vivo, que até ontem era uma palavra sem meios-termos, vivo demais! Conectado com que o que está embaixo e com o que está atrás, ele fazia parte do eterno, do Big Bang, do sempre e estava ali, presenteando-a com um cartão postal. Ele sabia ser inteiramente, só isso. Ela trêmula, abraçada a sua ignorância como em um ursinho, retornou alterada para o mundo de concreto. Encarou a avenida como os cachorros de madame encaram seus sapatinhos coloridos. Estava por demais ocupada em perceber a própria respiração.

(imagem de Jacques Denarnaud)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

The jungle

For a monkey with an oversized brain, abstraction is a curse.

sábado, 11 de setembro de 2010

Por? Para? Língua e voz...

A cantora americana afinadíssima, fluente em francês, lutando com a língua portuguesa:

- Essa cançao foi feita... por... para... mim?

Risadas.

- Por... para... isso é muuuito difícil!

Fofa.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A primeira vez que eu te vi...


Faz tempo, talvez tenha sido em outra vida, mas eu lembro bem. Perdida naquele fim de mundo da vila num dia vazio, talvez fim de semestre, conversava eu com duas das pessoas menos interessantes do planeta: professorão e professorinha. Professorão me dizia que só via filmes dublados por preguiça de ler as legendas. Professorinha me contava de sua mãe que vendia Avon. Eu já pensava em suicídio quando você chegou. Não me lembro de ter te visto antes, acho que essa foi mesmo a primeira vez. De preto, camiseta de caveira, cabelo grisalho quase raspado, pequena, séria e brava. Resmungando. Sentou na ponta daquela mesa ali na abominável praça de refeições e desabafou:
“Puta que o pariu! Quando eu escolhi essa profissão eu achava que iria conviver com pessoas bacanas, inteligentes, interessantes... agora estou aqui tendo que aguentar essa gente feia e tacanha!”
Eu estava salva! Alguém me entendia! Você, criatura, só você...


Feliz aniversário, querida!

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Se fizesse diferença...

Se fizesse diferença eu vestiria uma roupa nova, bem bonita e macia, usaria os melhores perfumes e os melhores cremes, faria uma maquiagem cuidadosa, de efeito, perfeita para esse dia, para essa hora, para esse evento... arrumaria meu cabelo com produtos perfumados, ficaria horas com o secador até que cada fio estivesse no exato lugar planejado com aquele aspecto de que eu simplesmente nasci assim... encontraria o brinco mais bonito do tamanho perfeito para valorizar o meu rosto, escolheria um sapato que me deixasse alta e longilínea, que me fizesse poderosa e, ao mesmo tempo, delicada... pesquisaria o esmalte perfeito para combinar com a roupa perfeita, sem ofuscar nenhum dos outros milhares de detalhes aos quais eu me dedicaria devotamente, inteiramente, obsessivamente. Se fizesse diferença... Não faz.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Aquela gente

Para elas - teatro é romance,
Para eles - teatro é comédia,

Para elas - cabelo é chapinha,
Para eles - cabelo é rédea,

Para elas - família é administração,
Para eles - família é tragédia,

Para elas - terapia é "básico",
Para eles - terapia é televisão,

Para elas - dinheiro é salto,
Para eles - dinheiro é carrão,

Para elas - sonho é manchete,
Para eles - sonho é botão,

Caretas com roupa de puta,
Modernos que moram com a mãe.

sábado, 28 de agosto de 2010

Pseudo-modernidade

Os modos primitivos já incluiam peles pintadas de crenças, ritmo pulsante em volta do fogo e ninho cheirando comida. Quando o bicho pega, dá saudades da caverna.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Basilica di San Pietro

Não é uma questão de fé, o problema é que o Catolicismo me assusta. Sentia-me uma formiga isolada ao olhar tanto sangue e martírio enquanto milhares de turistas horríveis riam alto e batiam fotos insensíveis. Minha insignificância acuada no mármore e tudo em volta ecoando tristeza e riqueza, riqueza e tristeza, tristeza e riqueza, num pêndulo da arte colossal que num relance podia me arremessar no escuro da culpa. Sempre pegajosa culpa. Navegar na superfície, como quem tirava fotos com celulares alienígenas, só seria possível se estivesse embebida na lama da ignorância. (Ali, mais que nunca, soava pegajosa aquela ignorância.) Entre a cruz e a Apple, um arrepio gelado escorregava pela minha nuca. Era preciso achar alguma coisa de humano por trás do imenso, era preciso sentir alguma coisa de amor embaixo do sangue, era preciso enxergar alguma coisa divina acima do passeio... Nada tão imenso é comprado com dinheiro. Era preciso curvar-se ao Poder que impulsiona a História. Não foi possível não sentir medo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Eu juro que sonho essas coisas...

Noite branca, respiração de fumaça. Eu era ele e dava ordens. A equipe media dados, movia equipamentos, discutia aos berros. Luzes mínimas refletiam no gelo que era chão.
De repente, escutamos a tropa - estavam próximos. Peso nas costas, lanternas baixas, cães ofegantes. Movíamos em silêncio, com pressa, neve até os joelhos. Umidade entrando por baixo da pele. Urgência – avisar - salvar. Muita noite ainda.
Longe depois, vimos luzes nas janelas e lá em cima, prédios de gente, movimento de vida.
Subida difícil, pressa para cima, mãos de luvas em plantas de lama que escorriam na encosta. Ex-plantas, lama de neve. Branco de morte. O esforço de mãos, pernas e patas fazia o ar quente virar nuvem de fumaça. Pressa, pressa, pressa. Nada se via. Urgência danada.
De repente – BUUUM!!!!!!!! Nuvem de fumaça. Noite vermelha, fogo nas janelas. Tarde da noite, a vida fumaça. Todos na lama, respiração na neve. Urgência de nada.

domingo, 15 de agosto de 2010

Green, go.

WE ARE AGAINST WAR AND TOURIST MENU.
Essa era a placa na porta do restaurante do Trastevere. Minha leitura imediata:

Seus valores não valem de nada por aqui, não se encaixam, não se aplicam. Não pretenda saber o que é bom para mim, nem saia da sua Terra para vir até aqui olhar seu reflexo no espelho. Não entendeu? O Carravagio está na Villa Borghese. Vai lá e pensa. Existem outros mundos, outras culturas, outras milhares de maneiras mais bonitas e elegantes de pronunciar o erre. Estávamos aqui antes de você nascer, fomos maiores, melhores e mais megalomaníacos. Veja o que aconteceu. Tudo passa. Já está passando, os ciclos se fecham: sinta no ar. Sua ambição nem de longe é novidade. Olhe e veja. Reis do espetáculo? Já existiram outros gladiadores, meu bem, antes do Russel Crowe nascer. Aprenda que nem tudo que te disseram era verdade. O universal é uma ilusão. A Univesal também. Gordura? Como se vê por aqui, a culpa não é do carboidrato. A verdade dura um segundo. Não me diga o que fazer, nem decida o que é melhor para mim. Nem para os outros. Menos, entendeu? O seu dinheiro? Bom, eu preciso dele, não vou negar. Mas não vou mudar meu tempero só porque você cresceu comendo ketchup. Aniting two trink?

terça-feira, 10 de agosto de 2010


O som de Roma é o som da água brotando do mito e batendo na pedra.

sábado, 7 de agosto de 2010

Amanhã é dia dos pais...

Na minha cachola, tristeza, vitrola, cachola, vozzzzzzzzzzz......

"e pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza, um bocado de tristeza...."

Saudades, querido! Manda um beijo para ela também?

(Samba da Benção. Vinicius de Moraes e Baden Powell)

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

As Árvores

Quanto maiores, mais sensíveis ao som.
Os bosques suspiram longos silêncios.
A terra úmida elas guardam aos seus pés.
Engole nossos passos.
Nossos passos.
Não interessam.
Elas...
Silêncios.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O grito

A senhora Millena Millor, a Mimi, acreditava piamente que a Vida lhe devia algo. Passava seus dias infeliz, reclamando o prazo de entrega, esbravejando contra o obeso Mundo que parecia ter sido plantado no meio do caminho para impedir o pagamento da citada dívida. Azeda, sentindo-se injustiçada, não cansava de cobrar a Vida, que escorregadia, insistia em não atendê-la.
Seu marido, o senhor Dr. Pedro Millor achava que podia domar a brava Vida. Passava seus dias na batalha, selecionando armas e instrumentos de dominação, preparando-se para os próximos confrontos. Atento, planejava cada passo com antecedência, programava-se, dava ordens. O que mais o irritava eram as Surpresas. Ah, as Surpresas... Sempre muito bem enfeitadas, de malas na mão, batendo na porta da frente nos momentos mais inconvenientes... Elas sempre o amaram apesar de ele tratá-las muito mal.
Joana, filha do casal, sempre recebeu a Vida como uma valiosa e inesperada batata quente sendo jogada em seu colo no de repente. Tratava-a como uma fina louça chinesa rodopiando em cima de uma haste cristal ou um livro de segredos milenares escritos em folhas de seda equilibrados em cima da cabeça quando se desce uma escada em caracol. Sem questionar, duvidar ou avaliar foi tentando levar a Vida cuidadosamente, delicadamente, um pouco mais para esquerda, um pouco mais alto, um pouquinho mais rápido, foi demais, cuidado... Mas a Vida bebeu, tomou tombo, queimou sua mão, pisou no seu pé, fugiu do eixo, do prumo, da vista... até que um dia, a Vida, do nada, queimou-a de verdade. Joana magoou sério, deixou a vida de lado por um tempo, escondeu-se dela e de todos.
Os pais de Joana ficaram arrasados. Mimi achou que era pessoal, um baita desaforo da Vida! O certo, depois dessa, é que a Vida lhe pagasse em dobro aquilo que devia, mas até onde se sabe, não sabia. O senhor Dr. Pedro achou que era culpa dele, que ele sim é que deveria ter protegido melhor a menina! Passou a levantar mais cedo e propôs para a filha um programa de treinamento para que ela evoluísse no domínio da Vida.
Joana não escutou. Sentia que o problema da Vida era com ela e não com seus pais. Depois de muito pensar, avaliar e questionar, numa fria manhã de neblina, antes do Mundo acordar, Joana abriu a porta da frente e gritou:
- Heeeei, dona Vida, eu sei que você está aí! Vidaaaaaaaaaaaa! Cadê você? Eu! Aqui! Pronta! Que diabos você guardou para mim? Vidaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
Os pais nunca mais viram a menina. Mimi toma comprimidos e não fala coisa com coisa. O senhor Dr. Pedro não sai mais do quarto, dizem que bebe. Se você tiver alguma notícia, por favor, entre em contato.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

quinta-feira, 8 de julho de 2010

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Zezão

Eu tenho um Zezão. Quer dizer, um desenho em papel, meu tão conhecido papel dos mais de dez anos encardindo o dedo no pastel seco. Tenho saudade da textura do pó nos dedos. Então, de volta ao meu Zezão. Se me é permitido usar o termo, ‘o meu Zezão’ é um desenho em papel cor de saco de padaria com uma aplicação de um estêncil talvez, não sei dizer ao certo, num tom meio dourado, parecido com o fundo, mas brilhando um pouquinho. Uma casa, talvez em ruínas, talvez em construção. Talvez os dois, como São Paulo. Na parede dessa casa, há lindo um Zezão azul, rebuscado e retorcido, como os que se vê nos muros ou esgotos ou bueiros, sempre sujos daquela maldita fumaça preta que se precipita e escorre por cima como uma lama, como aquele Zezão que se vê do lado oposto do correio embaixo do viaduto que sai da Sumaré e cruza a Matarazzo. Aqui em casa, não é assim. Aqui, eu respiro a fumaça que entra pela janela e escorre pulmão adentro, mas aqui eu protejo o meu Zezão. Ele é meu e aqui sou eu que mando. Mas às vezes bate aquela dúvida: será que ele também tem saudade da textura do pó?

Obs1: Há uma exposição do Zezão na Galeria Choque Cultural, na faixa, até 07 de agosto.

Obs2: Como férias e computadores não combinam, esse blog ficará desatualizado nas próximas três semanas...)

domingo, 27 de junho de 2010

Destino

Tenho acordado no meio da noite com a sensação de que acabei de nascer. Nem a tosse, nem a dor de cabeça, nem a falta de posição ou o som recorrente do caminhão de caçambas me fazem antiga. Da vida passada, guardo a vaidade que também dói. Quando tempos atrás, eu sentia a correnteza me arrastar com força, tive medo, muito medo. Mas desde que a água acalmou, a margem me abraçou e o fogo iluminou a noite, parece-me que agora e sempre não existe opção. Reconhecimento sim, opção não. Édipo lembra? Coitado dele e de nós, que não decidimos nada. E, obrigada Deuses, por me darem tantas vidas em uma. Perdi a conta já, mas acho que na primeira, nasci gata.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dia dos namorados

Pensei em escrever alguma coisa para você, mas tudo que eu pensava era muito batido, muito cliché. Queria saber declarar meu amor sem repetir outros amores, sem parecer cartão de livraria. Passou o dia dos namorados e eu ainda não consegui criar nada que fizesse o amor parecer original. Por mais que a gente renove o amor, ele é sempre o bom e velho amor que desde sempre habita cartas, obras de arte e mensagens de SMS. E ainda assim é só nosso, milagre. Mas o que eu sei é que quero que a gente vire um casal de velhinhas de cabelo roxo, pele enrugada e linguajar ultrapassado só para a gente andar de mãos dadas por aí, desobedecendo os médicos e rindo do futuro, que será o presente e que, do lado de fora do nosso mundo, será uma bela merda.

É...ficou diferente, acho que consegui.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Os outros

Aceitar quem aceita tudo é tão difícil quanto aceitar quem não aceita nada, mas para evoluir eu preciso manter olhos, ouvidos e braços abertos. De qualquer maneira, tudo que eu penso é tão pessoal quanto de todos nós.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Água...

Muito tempo se passou e nada. Parada. Bicicleta ergométrica. De repente, um passinho, uma coragenzinha, um frio na barriga e ... você entra na área de correnteza. No começo é um passeio, dá até para olhar a paisagem, você acha que vai chegar na outra margem. Mas aí a tromba d'água te pega e te arrasta e você perde o controle. Não o rumo, esse você não perde, porque não esse não é da sua alçada. Mas mesmo assim, mesmo querendo se entregar, dói desapegar o vício do controle...

domingo, 23 de maio de 2010

Eclipse

De quando em quando, as órbitas dos destinos dos diferentes corpos grandes ou pequenos alinham-se como planetas e isso projeta em mim um eco da charada da esfinge. Capa de jornal – foi criada a primeira célula sintética. O aluno me pergunta – então estava tudo errado aquela idéia de que a vida só nasce da vida? Eu respondo que talvez a unidade da vida deva ser reconsiderada, cito os príons e o gene egoísta do Dawkins e deixo-o ainda mais confuso. Ele me diz que tudo bem, mas eu não respondi sua pergunta. Não respondo por que não sei, assumo diante da filosófica dúvida. Ele parece ficar satisfeito com o respeito que tenho pela mesma e me deixa sozinha no laboratório bagunçado, que cheira acetona. Nessa mesma semana eu havia terminado de ler o romance Frankeinstein (da Mary Shelley) e não consigo não associar as coisas e não achar que a ambição da ciência, que eu tanto amo, só mudou de escala. Poeira cósmica de menos é bobagem. Na manhã seguinte, antes das 6hs, ouço no rádio um bispo parabenizando os cientistas pela descoberta e acalmando os fiéis - criar uma célula sintética não se compara a criar a vida humana – diz a voz com sotaque. Sábado à noite – Blade Runner no DVD. Os medos do futuro parecem velhos para o mundo, mas sempre têm algo de novo para mim. A pergunta ecoa na minha cabeça em escalas múltiplas, enquanto os planetas vão se desalinhado e me deixando aqui, sozinha na minha órbita imprevisível.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O primeiro segundo

A mamãe e a tia esperavam minha opinião, enquanto eu, sentada na mesma mesa de cozinha onde tantas vezes tomamos café, segurava seus resultados do exame de sangue. Do ponto de vista científico, os resultados eram mesmo inconclusivos e foi isso que eu disse a elas, antes de levantar os olhos e te encontrar parado na porta da cozinha com a mão no pescoço que doía. Ao te ver ali, de chinelos e abatido, achei que tinha ficado frágil e eu soube daquilo que eu nunca poderia dizer a elas. Não havia como saber, mas é assim: de repente, não há dúvida alguma, sabe-se. Soube que você ia embora logo e que você sabia disso. Num instante, tudo muda, o mundo vira outro lugar e a sua vida vira outra coisa. Um segundo e éramos cúmplices, sabíamos o que era melhor não saber. Na verdade, acho que não chegou a um segundo o tempo que eu levei para te perdoar, implorar o seu perdão com o olhar e tornar-me sua aliada. Naquele exato momento já comecei a sentir a tua falta, essa falta que desde então é parte constitutiva de quem eu sou e que é minha e preciosa. Quando eu percebi que você ia embora, fiz você se mudar para um lugar dentro de mim de onde você não pode mais escapar. Você ficará aí, até o dia em que eu precise me mudar para um mundo de dentro de alguém, antes de ir embora desse mundo que é sempre diferente e sempre imprevisível.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sonho recorrente

Quando eu era criança, eu tinha sonhos recorrentes. Foram vários sonhos diferentes, em fases diferentes, sempre assustadores. Nenhum sonho bom deu-me o privilégio de repetir-se. A maioria deles eu já esqueci, mas outro dia, assim meio do nada, assim meio por causa da vida, eu lembrei de um deles bem antigo, de pequena mesmo, que me pareceu agora ainda mais assustador. Era assim: eu caminhava em direção à porta da minha casa e os meus passos coincidiam com o som dos passos de um monstro que descia uma escada que cruzava meu caminho bem em frente à porta. A escada do sonho, que ficava exatamente onde era a escada real da minha antiga casa, descia do céu e parecia não ter fim. Eu nunca via o monstro, mas o som dos passos ficava cada vez mais alto e próximo e eu sabia que, assim que eu cruzasse a porta, ele iria me pegar. De dia, eu ouvia só os meus passos, mas passava por ali bem rápido, por via das dúvidas. Acho que não é de graça que alguém afasta suas lembranças infantis. Que tipo de criança pode ter medo de por os pés para fora de casa?

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Posso?

Eu também estou perdida. Esse deve ser o estado normal do ser humano. Não sei, eu acho, mas posso estar errada. A gente nunca sabe. A gente pouco pode. Eu sei, por exemplo, que não posso te salvar. Às vezes eu esqueço, mas eu sei. Mas eu prometo, que mesmo não podendo te salvar, eu não vou esquecer de amar, porque isso eu sei mais que tudo. Serve?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Darwinismo aplicado

A felicidade não nos faz viver mais ou ter mais descendentes e, portanto, não é uma vantagem seletiva. Por isso, a felicidade não foi e não será selecionada nesse nosso ambiente. Por sorte, o mesmo vale para a extrema infelicidade. Se a felicidade não é da natureza da nossa espécie, é normal que seja um talento de alguns sortudos, como é o canto. Mas eu, que não nasci com nenhum dos dois talentos, não sei e nunca saberei cantar, mas me proponho a aprender a ser feliz. Afinal de contas, não tenho voz para o canto, a felicidade é o que me resta.

domingo, 2 de maio de 2010

Limite

Durante uma semana ela esperou, fingiu que era forte, fingiu que estava tudo bem. Depois de anos prevendo esse fim, sentindo-o aproximar-se, afastando esse pensamento, depois de tanto tempo, alguns dias a mais pareciam quase nada. Trabalhou, sorriu, desviou repetidas vezes daquele assunto. Mas, como era de se esperar, mesmo a mais submissa, a mais paciente das mulheres, a mais correta, a mais mansa tem seu vulcão adormecido dentro de si e naquela manhã, algo rosnou dentro dela. Se ele precisava de um tempo, esse tempo já havia passado. Se ele queria compreensão, já havia recebido mais do que merecia, muito mais! Agora ela percebeu, ele havia sido compreendido demais, protegido demais, poupado demais. Ela percebeu que havia esquecido de proteger-se, havia esquecido de si. Ela se percebeu. Finalmente, aquele rosnado rouco, aquele movimento vindo do seu útero, aquela clareza de pensamentos eram as provas de que existia e de que era mulher, vingativa por natureza. Naquele momento, ela soube que esse seria o dia em que conquistaria a sua alforria. Só não sabia ainda do tamanho da força negra que nasce do amor, quando esse se vira do avesso.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sempre serpentes

Deslizando em baixo do lençol, enroladas na gaveta, subindo pelo encanamento, contornando o tapete, descendo pela garganta, trocando de pele na minha ausência, escondidas nos sapatos, dormindo na minha barriga, marcando a minha pele, esperando a minha vez.

domingo, 25 de abril de 2010

Na diretoria

- Ser intelectual, meu bem, é uma ilusão como outra qualquer. Quem não se ilude para viver? Na verdade, a intelectualidade é tão relativa quanto a riqueza e, convenhamos, com a educação do jeito que está, os critérios de comparação cairam. Qualquer um que lê mais de dois livros por ano se considera intelectual. A intelectualidade ficou acessível, ou melhor, axcessível, como você gosta de falar - disse ele, em alto e bom tom, olhando-a nos olhos e batendo o punho na mesa de madeira cheia de pilhas de papel. As peças reposicionavam-se no tabuleiro.
- Fica - suplicou-a com a testa franzida, num momento impar de humanidade.
Ele desviou o olhar.
- Você sabe que eu não posso mais.
Ela baixou os olhos e caiu sentada em sua cadeira. Respirou fundo e assinou o documento a sua frente.
Ele saiu sem dizer palavra.
Com lágrimas nos olhos, mas endireitando as costas, ela teclou a mensagem usando o comunicador interno.
- Ele está descendo agora.
- Pode deixar - foi a resposta que apareceu no quadradinho no centro da tela que brilhava na sua frente.

Medo 1

Eu tenho medo dos textos de Guimarães Rosa. Não é pelo grau de dificuldade ou pela genialidade. Eu sei que sou pequena. Eu tenho medo do depois, daquela sensação de completude que sempre me lembra da morte.

(provavelmente, esse será o último resgate do póstumo blog experimental. Renovar é preciso!)

A Máquina

Não acredite, o mundo não é seu, o mundo não é isso que você vê ou ouve ou cheira, o mundo é outra coisa. Há uma máquina entre você e o mundo. A Máquina projeta um mundo inventado na sua mente. É isso mesmo, acredite. A Máquina está aí e já estava aí muito antes de você. Os sensores ultra especializados dessa Máquina captam fragmentos de medidas, de valores, de dados, fragmentos de porcentagens e de conjuntos, e plotam e selecionam e transferem tudo para uma central que calcula, analisa e despreza o que não encaixa nas espectativas, e depois ainda reformula, recria e manipula tudo. A realidade moldada é virtualmente convincente. Na verdade, ela é tudo que se tem, tudo que se pode, tudo que se sente.

A Máquina nasceu antes do Bill Gates e é maior que eu, que você, que Kasparov ou Da Vinci. Ela é muito maior que esse reles computadorzinho aí na sua frente, esse mesmo que daqui a três anos você vai doar para uma escola pública. A Máquina está evoluindo a milhares e milhares de anos, mas ninguém tem acesso ao sistema operacional. Ela é indomável, incontrolável. Só de sacanagem ela não resiste, ela provoca, ela brinca, ela te dá um acessozinho, libera um programinha, empresta um joguinho, uma esmolinha de nada e faz você acreditar que tem algum controle. Ela, a Máquina, não presta.

A Máquina é o Cérebro.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um bicho.

Você se arranjou um bicho. Um bicho que tem um bicho, mas isso não vem ao caso. Falávamos de você. Você se arranjou um bicho. Bicho que acua, entoca e, às vezes, avança. Bicho arisco e medroso, que faz ninho e não cansa de pedir carinho. Você se arranjou...

Só para te agradar...

Odeio quando tu me agrides como se o meu amor te fizesse mal. Nossos mundos separados por um universo de dúvidas e confusões. Tua alma plantada nesse mundo jaula da tua cabeça. Não vês que as fadas te deram tanto talento, mas te privaram da realidade? Não vês nossas almas contínuas e opostas, banhadas nessa lama que é tua e minha, que tu reinvindicas só pra ti? Odeio a tua lama, as tuas distorções, o teu sangue misturado com o meu, o talento que é todo teu e essa realidade besta que é toda minha. Odeio com todas as minhas forças, com esse ódio corrosivo que eu invento só pra te agradar.

(Resgatando pedaços do antigo blog...)

domingo, 18 de abril de 2010

O meu clã

O meu clã parece sincício - gente incrível, incrivelmente perdida; gente só, mesmo que unida. Ninguém se entende, no meu clã. Ninguém se desentende. No meu clã, crises crônicas renovam-se eternas em gradientes de naturezas diversas. As batalhas são de urgência e, no meu clã, não há prêmio ou recompensa. Pulsa forte, depois se arrasta, muda de lado na hora errada. O meu clã confunde, mas não apaga. Esse vínculo vitalício é sincício, amor e vida e o resto, perto disso, é piada, trabalho e nada.

sábado, 17 de abril de 2010

A decisão

Nessa altura do campeonato você já sabe: feliz, feliz mesmo, não vai rolar. Ninguém vai te salvar. Não há resposta certa e os dois caminhos possíveis são pesados e passíveis de arrependimento, mesmo que pontuados por pequenas recompensas. O muro é o pior lugar, o mais alto e perigoso. Mas você ainda pode assumir a responsabilidade da decisão central e, com isso, aliviar um pouco a sua confusão psíquica e tentar traçar uma estratégia de vida: GUERREIRA ou VÍTIMA - quem é você?

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Toda manhã eu olho você...

Como se fosse normal

Como se a vida fosse fácil

Como se não houvesse o medo

Como se eu pudesse ajudá-los

Como se eu não sentisse falta deles

Como se um Deus soubesse nossos nomes

Como se o seu amor não fosse um doce milagre.


(Resgatado e editado. Não quero perder você nem por uma palavra.)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Contaminação

Talvez você me enxergue jovem, bonita, inteligente, bem de vida, bem amada, com saúde, com uma família, um lugar bacana para morar, uma cachorra linda, projetos e sonhos em andamento. Talvez eu seja um pouco assim. Mas pensar em mim como unidade é muito pouco realista: tenho o amor e os meus amados. O amor, esse complexo vínculo involuntário, me torna parte de algo maior. O amor faz os meus infiltrarem-se em mim, me torna permeável a suas dores, derrotas e perdas. A felicidade vem em gotas, é pontual, efêmera e individual. A dor escorre, infiltra e contamina. Portanto, no meu pouco tempo livre, de quando em quando, eu me reservo o direito de ser infinitamente triste. Mesmo assim, devo confessar de cara que a tristeza sem culpa ainda é sonho de consumo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Navegar só mais um pouquinho...

Que horas serão, devo estar atrasada, oh Deus, quanta luz, o que era mesmo que eu sonhava, meu braço tá dormindo, a cachorra ronca, deve ser cedo, mas que dia é hoje, será que já está na hora, se eu ficar bem quieta ela não acorda, quarta ou quinta talvez, tinha alguma coisa a ver com o mar, vou virar devagar para olhar o relógio, ai minhas costas, não é possível, quanta luz, ah não, despertador dos infernos, não, cadê o botão, cala a boca, era um mar de ressaca, bocejo de bicho no corredor, quarta, acho que hoje é quarta, ouço as patinhas no chão de madeira, isso, fica quieto santinho, se não te jogo pela janela, e essa gente já tá buzinando, cadê meu chinelo, focinho na cara, já vou filha, hoje é quinta, quarta já foi, tenho que ir, já vou cachorra, dá um tempo, será que vai fazer calor, que será que eu visto, para onde eu tenho que ir hoje, tô indo, tô indo, tô levantando, sabe o que é, focinho gelado, é que eu queria navegar na minha cama só mais um pouquinho.

(Mais um texto resgatado do meu antigo blog antes do seu naufrágio definitivo, que será em breve.)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Restos de você

A verdade é que algo de você ficou em mim. Uma tirada, um termo, uma piada. Palavras e convívio tatuam os hábitos. Eu não queria, mas é assim que é. Me incomoda, mas é assim que é. Saiba porém, que isso tudo é bem pouco, é bem pequeno, é só poeira. Hoje sei que EU sou maior do que esses restos de você.

domingo, 11 de abril de 2010

Notícia boba

Meu amigo morcego reproduziu-se. Foi visto com mulher e filho voando em frente ao prédio. A vida está sendo chamada para a cidade ou a cidade simplesmente ocupou tudo? Há uma família de morcegos morando aqui, num bairro paliteiro, em Sampa. O que isso significa?

sábado, 10 de abril de 2010

Serpentes e serpente

Há muitos anos sonho com serpentes, sonhos de todos os tipos, assustadores, horrendos, lindos, fantásticos, comuns. Já me disseram que serpentes simbolizam inimigos, mas eu não acredito. São serpentes internas essas minhas. Durante um tempo trabalhei no Butantan, em frente ao portão da herpetologia. Naquela época, eu já sonhava com serpentes. Durante o dia, imaginava-as lá, tão perto de mim. Medo e fascinação no mesmo bicho. Um dia, quarta nublada, saí do laboratório em formato de estábulo para ir até a copa, que ficava em outra baia. Entre os paralelepípedos gastos e os matinhos, havia um buraco. De dentro desse buraco, saía uma serpente com listas vermelhas, quieta. Um metro ou mais de listas. Nesse dia, bati na porta da herpetologia. A garota de avental branco pegou a serpente com a mão como se pega um fio de cabelo do chão da cozinha e declarou sorrindo: "É verdadeira!".

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Depois te conto. (Para T)

Te encontrei outro dia naquela estrada imensa e vazia. Você me abraçou daquele jeito que não existe mais. Disse estar tão cansada - era longe, eu não acreditaria na burocracia! O medo havia fugido dos seus olhos. Depois de tanto tanto, o medo esvaziou. Mas ainda era você - a ironia, o sarcasmo, a doçura e o sorriso. Você estava linda, já faz um tempo. Depois disso, você não veio mais. Deve estar ocupada com coisas de outra dimensão.

Eu preciso te dizer: algumas piadas perderam a graça. Outras não - depois te conto.

(Reedito esse texto, que havia sido publicado no meu falecido blog, quase no mesmo formato. Faço isso porque ele foi escrito de coração para alguém cuja ausência impregna a vida com gosto residual de adoçante de gotinhas. Saudades todo dia, toda hora.)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Como assim?

Um dia você vai no seu médico/terapeuta/fisioterapeuta/curandeiro e ele pergunta preocupado: "Você nunca extrapola?" - como assim? eu? hãããã - não. Eu nunca extrapolo. - Você percebe, ali na maca, que essa é a única resposta possível e verossímil. Você percebe que o que você acha absolutamente normal e obrigatório é um distúrbio preocupante, pelo menos para o seu médico, que você conhece e confia a anos. Agora esse distúrbio passa a ser preocupante para você. Para mim. Mais uma preocupação. Extrapolar, como assim? Da para aprender isso depois dos 30?

As suas tranças

Voar é para quem sabe ir e voltar. É privilégio nessa era de seres perdidos. Você está perdido. Esqueça as suas opções. Ingenuidade acreditar que as opções podem te ajudar. Olhe para suas amarras, cuide delas, aprenda com elas. Elas são só suas, tão suas, que só você pode trançá-las.

terça-feira, 30 de março de 2010

Sobre o morcego e o disco voador

Acho que ele só gosta de mim. Depois que nos conhecemos ele está sempre por aqui. O primeiro encontro foi no meio da madrugada, por volta das quatro, na minha rua, em plena urbanidade classe média amontoada, vazio pra lá, vazio pra cá, dia de semana, eu e a cachorra que, desesperada, havia me acordado, focinho na cara, sapateado de patinhas até que eu levantasse, me vestisse, entendesse o recado, o elevador, a coleira, o porteiro dormindo, o portão eletrônico e o morcego. Sim, o morcego. Sozinho, imenso, voando em espirais, procurando nas poucas árvores que sobreviveram aos sobrenaturais temporais do último verão os coquinhos que as maritacas barulhentas da manhã esqueceram de comer. De repente eu tinha treze anos de novo. De repente eu experimentava voltar sozinha para a casa de praia no meio da madrugada. Uma escuridão do além, lá atrás, muito mais do além do que o além de agora, escuridão com barulho de mar, escuridão trezentos e sessenta graus. E com ela, os medos. Medo de passar em baixo dos chapéus-de-sol onde o escuro era ainda mais escuro e onde centenas de morcegos giravam, giravam, espiralavam com o som agudo do seu sonar que arrepiava até a nuca, coquinhos semirroídos caindo e rolando. Outro medos que vinham junto, num mesmo pacote imaginário, medo de tarado, de cachorro bravo, de assombração, do meu pai acordar e não me encontrar em casa e, o pior de todos, medo de disco voador. Sim, o local era perfeito para um pouso, o céu limpo, pontilhado, se houvesse algum disco voador querendo visitar as vizinhanças, não haveria motivo para escolher outro aeroporto. E eu ali, dando bandeira. Os medos e as dúvidas se alternavam com o barulho de mar, de sonar, mar de sonar, mar de sonhar, sonho de voar, pé descalço na areia, pé descalço na grama, espirais, espirais, espirais e agora, tantos anos depois, esse morcego me aparece aqui, do nada, na minha rua, na porta minha casa, me trazendo uma saudade danada. Dos medos, não das dúvidas, essas ardiam demais. Parece que ele, o morcego, só aparece para mim. A cachorra nem percebe quando ele brinca de escanear os passeantes noturnos nessa colônia de concreto. Meu amor diz que nunca viu o tal morcego. De onde ele veio, eu não sei, mas desconfio que tenha vindo de mim, do meu passado, de quem eu fui e não lembrava mais. Talvez seja preciso tomar um coquinho roído na cabeça para lembrar a delícia que é caminhar sozinha com medo do disco voador.