No meio do caminho tinha uma caranguejeira. Gelei. Se considerar os dois semestres inteiros de aulas de INVER toda sexta à noite naquele laboratório que a gente chamava de AQUÁRIO porque ficava em frente à entrada do CA e de onde, através de janelas enormes, nós assistíamos o desfile do pessoal já com a cerveja na mão, se considerar que eu havia estudado muito, a conclusão é que eu deveria saber das qualidades das caranguejeiras de serem peludas, horrendas e pouquíssimo agressivas. Mesmo assim, naquela noite quente sem lua no sul do México, uma menina mimada eu virei. Pavor. Situemo-nos.
Viajava eu sozinha pela rota maia, cruzaria a fronteira entre Chiapas e a Guatemala no dia seguinte numa canoinha ridícula através de um rio marrom para visitar cidades perdidas e vulcões dormentes e ali, mesmo dentro de um hotel, uma versão extra-large da úmida mata Atlântica erguia-se all around. Voltava do jantar. Estávamos a sós, a aranha e eu mesma, cara a cara, nem mais nem menos. Travei. O caminho era estreito, mas era só dar mais um passinho, meio grande, por cima dela, e continuar até chegar no meu quarto-bangalô. Nunca conseguiria. Viajar sozinha e me embrenhar na selva no meio da América Latina, tudo bem, super normal, mas aproximar-me daquele invertebrado pré-histórico (hífen sim, hífen não, hífen sim,... cada vez uma margarida...) era algo que minha natureza mais primitiva, primitivíssima ali em Chiapas, considerava impensável. Medo instintivo, hoje em dia, é uma emoção para poucos. Talvez fosse privilégio. Nem se pensa nisso. Mas ele está lá, naquele pedacinho medular e misterioso na raiz do cérebro, naquela parte homóloga ao cérebro da sua cachorra, lá está ele, com seu interruptor pronto para ser acionado. Minha cachorra sim, me entenderia, mas ela não estava ali. Em compensação, as árvores monumentais eram verdadeiras presenças e pareciam se divertir. Qualquer criança maia teria rido muito de mim. Mas era só eu a as duas naturezas, a de dentro e a de fora.
A sinfonia de cigarras era constante e ensurdecedora e só cessava em fade out de quando em quando, quando o céu pesado preparava para despencar mais uma das duchas niágara que desapareciam tão rápido quanto chegavam. Mesmo nesses segundos que precediam a chuva, não havia silêncio. As cigarras davam lugar aos macacos machos que urravam e balançavam galhos para chamar suas famílias como se fosse o fim do mundo. Eu pensava: e se as cigarras sumissem, será que os macacos saberiam quando urrar? De qualquer maneira, os minutos passavam e a aranha lá, empacada. Era evidente que aquela invertebrada específica não equivalia à caranguejeira que morava no pequeno aquário do instituto biológico. O mundo se invertia e ali a estranha era eu. Acho que ela deve ter me olhado de cima a baixo, estranhando. Eu teria, se fosse ela. Afinal, ali era o bairro e a rua da caranguejeira e eu, forasteira, queria passar! A civilização é mesmo biologicamente muito besta. Talvez aquelas civilizações mortas e violentadas que haviam habitado aquele lugar antes da Europa começar a vazar, talvez elas fossem mais normais. Eu confesso que no meu momento mulherzinha da cidade mudei de rumo, dei uma volta imensa por outra trilha até chegar no meu quarto-bunker embalado em telas por todos os lados, pelo outro lado. Antes de entrar, olhei para a trilha e vi que ela estava lá ainda, existindo ali no meio do caminho. Foi a última vez que nos vimos. No outro dia de manhã, ao despertar e abrir a porta da frente, não encontrei mais minha imponente anfitriã.
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