sexta-feira, 28 de maio de 2010

Água...

Muito tempo se passou e nada. Parada. Bicicleta ergométrica. De repente, um passinho, uma coragenzinha, um frio na barriga e ... você entra na área de correnteza. No começo é um passeio, dá até para olhar a paisagem, você acha que vai chegar na outra margem. Mas aí a tromba d'água te pega e te arrasta e você perde o controle. Não o rumo, esse você não perde, porque não esse não é da sua alçada. Mas mesmo assim, mesmo querendo se entregar, dói desapegar o vício do controle...

domingo, 23 de maio de 2010

Eclipse

De quando em quando, as órbitas dos destinos dos diferentes corpos grandes ou pequenos alinham-se como planetas e isso projeta em mim um eco da charada da esfinge. Capa de jornal – foi criada a primeira célula sintética. O aluno me pergunta – então estava tudo errado aquela idéia de que a vida só nasce da vida? Eu respondo que talvez a unidade da vida deva ser reconsiderada, cito os príons e o gene egoísta do Dawkins e deixo-o ainda mais confuso. Ele me diz que tudo bem, mas eu não respondi sua pergunta. Não respondo por que não sei, assumo diante da filosófica dúvida. Ele parece ficar satisfeito com o respeito que tenho pela mesma e me deixa sozinha no laboratório bagunçado, que cheira acetona. Nessa mesma semana eu havia terminado de ler o romance Frankeinstein (da Mary Shelley) e não consigo não associar as coisas e não achar que a ambição da ciência, que eu tanto amo, só mudou de escala. Poeira cósmica de menos é bobagem. Na manhã seguinte, antes das 6hs, ouço no rádio um bispo parabenizando os cientistas pela descoberta e acalmando os fiéis - criar uma célula sintética não se compara a criar a vida humana – diz a voz com sotaque. Sábado à noite – Blade Runner no DVD. Os medos do futuro parecem velhos para o mundo, mas sempre têm algo de novo para mim. A pergunta ecoa na minha cabeça em escalas múltiplas, enquanto os planetas vão se desalinhado e me deixando aqui, sozinha na minha órbita imprevisível.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O primeiro segundo

A mamãe e a tia esperavam minha opinião, enquanto eu, sentada na mesma mesa de cozinha onde tantas vezes tomamos café, segurava seus resultados do exame de sangue. Do ponto de vista científico, os resultados eram mesmo inconclusivos e foi isso que eu disse a elas, antes de levantar os olhos e te encontrar parado na porta da cozinha com a mão no pescoço que doía. Ao te ver ali, de chinelos e abatido, achei que tinha ficado frágil e eu soube daquilo que eu nunca poderia dizer a elas. Não havia como saber, mas é assim: de repente, não há dúvida alguma, sabe-se. Soube que você ia embora logo e que você sabia disso. Num instante, tudo muda, o mundo vira outro lugar e a sua vida vira outra coisa. Um segundo e éramos cúmplices, sabíamos o que era melhor não saber. Na verdade, acho que não chegou a um segundo o tempo que eu levei para te perdoar, implorar o seu perdão com o olhar e tornar-me sua aliada. Naquele exato momento já comecei a sentir a tua falta, essa falta que desde então é parte constitutiva de quem eu sou e que é minha e preciosa. Quando eu percebi que você ia embora, fiz você se mudar para um lugar dentro de mim de onde você não pode mais escapar. Você ficará aí, até o dia em que eu precise me mudar para um mundo de dentro de alguém, antes de ir embora desse mundo que é sempre diferente e sempre imprevisível.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sonho recorrente

Quando eu era criança, eu tinha sonhos recorrentes. Foram vários sonhos diferentes, em fases diferentes, sempre assustadores. Nenhum sonho bom deu-me o privilégio de repetir-se. A maioria deles eu já esqueci, mas outro dia, assim meio do nada, assim meio por causa da vida, eu lembrei de um deles bem antigo, de pequena mesmo, que me pareceu agora ainda mais assustador. Era assim: eu caminhava em direção à porta da minha casa e os meus passos coincidiam com o som dos passos de um monstro que descia uma escada que cruzava meu caminho bem em frente à porta. A escada do sonho, que ficava exatamente onde era a escada real da minha antiga casa, descia do céu e parecia não ter fim. Eu nunca via o monstro, mas o som dos passos ficava cada vez mais alto e próximo e eu sabia que, assim que eu cruzasse a porta, ele iria me pegar. De dia, eu ouvia só os meus passos, mas passava por ali bem rápido, por via das dúvidas. Acho que não é de graça que alguém afasta suas lembranças infantis. Que tipo de criança pode ter medo de por os pés para fora de casa?

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Posso?

Eu também estou perdida. Esse deve ser o estado normal do ser humano. Não sei, eu acho, mas posso estar errada. A gente nunca sabe. A gente pouco pode. Eu sei, por exemplo, que não posso te salvar. Às vezes eu esqueço, mas eu sei. Mas eu prometo, que mesmo não podendo te salvar, eu não vou esquecer de amar, porque isso eu sei mais que tudo. Serve?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Darwinismo aplicado

A felicidade não nos faz viver mais ou ter mais descendentes e, portanto, não é uma vantagem seletiva. Por isso, a felicidade não foi e não será selecionada nesse nosso ambiente. Por sorte, o mesmo vale para a extrema infelicidade. Se a felicidade não é da natureza da nossa espécie, é normal que seja um talento de alguns sortudos, como é o canto. Mas eu, que não nasci com nenhum dos dois talentos, não sei e nunca saberei cantar, mas me proponho a aprender a ser feliz. Afinal de contas, não tenho voz para o canto, a felicidade é o que me resta.

domingo, 2 de maio de 2010

Limite

Durante uma semana ela esperou, fingiu que era forte, fingiu que estava tudo bem. Depois de anos prevendo esse fim, sentindo-o aproximar-se, afastando esse pensamento, depois de tanto tempo, alguns dias a mais pareciam quase nada. Trabalhou, sorriu, desviou repetidas vezes daquele assunto. Mas, como era de se esperar, mesmo a mais submissa, a mais paciente das mulheres, a mais correta, a mais mansa tem seu vulcão adormecido dentro de si e naquela manhã, algo rosnou dentro dela. Se ele precisava de um tempo, esse tempo já havia passado. Se ele queria compreensão, já havia recebido mais do que merecia, muito mais! Agora ela percebeu, ele havia sido compreendido demais, protegido demais, poupado demais. Ela percebeu que havia esquecido de proteger-se, havia esquecido de si. Ela se percebeu. Finalmente, aquele rosnado rouco, aquele movimento vindo do seu útero, aquela clareza de pensamentos eram as provas de que existia e de que era mulher, vingativa por natureza. Naquele momento, ela soube que esse seria o dia em que conquistaria a sua alforria. Só não sabia ainda do tamanho da força negra que nasce do amor, quando esse se vira do avesso.