Ficar sozinha naquela casa nova, imensa, estranha, tendo que conviver intensamente comigo mesma já era, por si só, enlouquecedor. Meus medos, meus erros, minhas inabilidades, perambulavam como fantasmas. Era um excesso de eu mesma absolutamente contraproducente. Elaborava, por distração e meio sem querer, fantasias infantis de coisas inesperadas. Qualquer coisa que acontecesse poderia, eu achava, tirar-me daquela auto-reflexão forçada e cruel. Nessa altura do campeonato, depois de encarar tanta realidade, eu já deveria ter aprendido que o Destino é um bicho que não vale nada. Você quer surpresa? Aí está, Maria Clara, deal with it! E estava mesmo! Ali, na minha casa nova, na minha almofada de onça, algo entre sentado e deitado, mas de qualquer maneira, parecendo estar confortavelmente instalado, ele, o inominável. Nenhuma coleira com identificação (o que, na minha opinião, deveria ser obrigatório!) indicava quem era seu dono. Simplesmente me olhava.
O que senti de imediato foi nojo, instintivo e visceral, nojo mesmo. Talvez por isso, a Curiosidade com suas oito pernas peludas tenha se demorado alguns minutos. Por fim, veio coçar-me. Meio desconcertada, tive que procurar nas páginas soltas daquele código moral de bolso que consultamos só quando os apuros são realmente respeitáveis o procedimento padrão correspondente ao caso. Aquilo não me pertencia, não podia me pertencer e, afinal de contas, uma pessoa como eu não arrisca ultrapassagens indevidas nas fronteiras alheias. Sou firmemente contra as invasões. Por outro lado, é importante lembrar que uma situação inusitada, fora de hora e nojenta como essa pede um senso de critério e justiça pessoal que muitas vezes encontra-se emperrado ou enferrujado. No susto, me peguei imaginando o que ela teria dito se ainda estivesse aqui, nessa casa, nesse mundo, se ainda estivesse disponível para algum tipo de surpresa. Queria que a ajuda viesse dela. Ninguém mais me entenderia, ninguém mais saberia valorizar a oportunidade nojenta, eu sei, mas ainda assim uma oportunidade singular de mudar os paradigmas que regem as tomadas de decisão de esposas fracassadas e donas de casa sem talento. Não só eu, mas todo o segmento precisava da opinião dela. Entretanto, ela já não estava mais e essa linha de pensamentos só serviu para aumentar minha carga de responsabilidade perante, bem, como direi, aquilo. Pelo menos, aquilo estava quieto. Pensei com arrependimento nos livros de auto-ajuda que eu comprei e não li. Talvez algum deles tivesse alguma dica, alguma idéia mesmo que vaga de como proceder quando o inesperado ousa em se materializar. Fiquei ali, durante algum tempo, pensando essas inutilidades e devolvendo aquele olhar.
Quando dei por mim, já escurecia. Só uma monga como eu poderia passar o dia e depois a noite ali, sentada, entre o nojo e a indecisão. Não, a noite é diferente, a noite eu não suportaria. O meu rotineiro e infantil medo do escuro aumentou de tal maneira a minha aflição que eu senti que finalmente toda a poeira cósmica depositada tanto no sótão como no porão da minha mente havia formado redemoinhos. Depois de tanto nada, aquela adrenalina no sangue pareceu ter vindo dos melhores traficantes. A coragem e a clareza brotaram do fundo meus instintos mais basais. Lembrei dela novamente, e da sua inseparável máquina fotográfica que agora era minha e dormia continuamente na gaveta da cômoda em cima dos álbuns de scrapbook que ela havia tão carinhosamente montado. Acho que foi aquele pedaço concreto dela, da minha querida, que me tirou daquela abstração idiota e me lembrou da urgência fundamental. Ela me fez agir. Vinte minutos depois, já no táxi rindo como uma louca, depois de deixar aquela casa abismal para todo o sempre com uma pequena mochilinha nas costas, eu ainda não sabia do incrível prêmio de fotografia que o registro daquele dia me faria ganhar.