segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sempre serpentes

Deslizando em baixo do lençol, enroladas na gaveta, subindo pelo encanamento, contornando o tapete, descendo pela garganta, trocando de pele na minha ausência, escondidas nos sapatos, dormindo na minha barriga, marcando a minha pele, esperando a minha vez.

domingo, 25 de abril de 2010

Na diretoria

- Ser intelectual, meu bem, é uma ilusão como outra qualquer. Quem não se ilude para viver? Na verdade, a intelectualidade é tão relativa quanto a riqueza e, convenhamos, com a educação do jeito que está, os critérios de comparação cairam. Qualquer um que lê mais de dois livros por ano se considera intelectual. A intelectualidade ficou acessível, ou melhor, axcessível, como você gosta de falar - disse ele, em alto e bom tom, olhando-a nos olhos e batendo o punho na mesa de madeira cheia de pilhas de papel. As peças reposicionavam-se no tabuleiro.
- Fica - suplicou-a com a testa franzida, num momento impar de humanidade.
Ele desviou o olhar.
- Você sabe que eu não posso mais.
Ela baixou os olhos e caiu sentada em sua cadeira. Respirou fundo e assinou o documento a sua frente.
Ele saiu sem dizer palavra.
Com lágrimas nos olhos, mas endireitando as costas, ela teclou a mensagem usando o comunicador interno.
- Ele está descendo agora.
- Pode deixar - foi a resposta que apareceu no quadradinho no centro da tela que brilhava na sua frente.

Medo 1

Eu tenho medo dos textos de Guimarães Rosa. Não é pelo grau de dificuldade ou pela genialidade. Eu sei que sou pequena. Eu tenho medo do depois, daquela sensação de completude que sempre me lembra da morte.

(provavelmente, esse será o último resgate do póstumo blog experimental. Renovar é preciso!)

A Máquina

Não acredite, o mundo não é seu, o mundo não é isso que você vê ou ouve ou cheira, o mundo é outra coisa. Há uma máquina entre você e o mundo. A Máquina projeta um mundo inventado na sua mente. É isso mesmo, acredite. A Máquina está aí e já estava aí muito antes de você. Os sensores ultra especializados dessa Máquina captam fragmentos de medidas, de valores, de dados, fragmentos de porcentagens e de conjuntos, e plotam e selecionam e transferem tudo para uma central que calcula, analisa e despreza o que não encaixa nas espectativas, e depois ainda reformula, recria e manipula tudo. A realidade moldada é virtualmente convincente. Na verdade, ela é tudo que se tem, tudo que se pode, tudo que se sente.

A Máquina nasceu antes do Bill Gates e é maior que eu, que você, que Kasparov ou Da Vinci. Ela é muito maior que esse reles computadorzinho aí na sua frente, esse mesmo que daqui a três anos você vai doar para uma escola pública. A Máquina está evoluindo a milhares e milhares de anos, mas ninguém tem acesso ao sistema operacional. Ela é indomável, incontrolável. Só de sacanagem ela não resiste, ela provoca, ela brinca, ela te dá um acessozinho, libera um programinha, empresta um joguinho, uma esmolinha de nada e faz você acreditar que tem algum controle. Ela, a Máquina, não presta.

A Máquina é o Cérebro.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um bicho.

Você se arranjou um bicho. Um bicho que tem um bicho, mas isso não vem ao caso. Falávamos de você. Você se arranjou um bicho. Bicho que acua, entoca e, às vezes, avança. Bicho arisco e medroso, que faz ninho e não cansa de pedir carinho. Você se arranjou...

Só para te agradar...

Odeio quando tu me agrides como se o meu amor te fizesse mal. Nossos mundos separados por um universo de dúvidas e confusões. Tua alma plantada nesse mundo jaula da tua cabeça. Não vês que as fadas te deram tanto talento, mas te privaram da realidade? Não vês nossas almas contínuas e opostas, banhadas nessa lama que é tua e minha, que tu reinvindicas só pra ti? Odeio a tua lama, as tuas distorções, o teu sangue misturado com o meu, o talento que é todo teu e essa realidade besta que é toda minha. Odeio com todas as minhas forças, com esse ódio corrosivo que eu invento só pra te agradar.

(Resgatando pedaços do antigo blog...)

domingo, 18 de abril de 2010

O meu clã

O meu clã parece sincício - gente incrível, incrivelmente perdida; gente só, mesmo que unida. Ninguém se entende, no meu clã. Ninguém se desentende. No meu clã, crises crônicas renovam-se eternas em gradientes de naturezas diversas. As batalhas são de urgência e, no meu clã, não há prêmio ou recompensa. Pulsa forte, depois se arrasta, muda de lado na hora errada. O meu clã confunde, mas não apaga. Esse vínculo vitalício é sincício, amor e vida e o resto, perto disso, é piada, trabalho e nada.

sábado, 17 de abril de 2010

A decisão

Nessa altura do campeonato você já sabe: feliz, feliz mesmo, não vai rolar. Ninguém vai te salvar. Não há resposta certa e os dois caminhos possíveis são pesados e passíveis de arrependimento, mesmo que pontuados por pequenas recompensas. O muro é o pior lugar, o mais alto e perigoso. Mas você ainda pode assumir a responsabilidade da decisão central e, com isso, aliviar um pouco a sua confusão psíquica e tentar traçar uma estratégia de vida: GUERREIRA ou VÍTIMA - quem é você?

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Toda manhã eu olho você...

Como se fosse normal

Como se a vida fosse fácil

Como se não houvesse o medo

Como se eu pudesse ajudá-los

Como se eu não sentisse falta deles

Como se um Deus soubesse nossos nomes

Como se o seu amor não fosse um doce milagre.


(Resgatado e editado. Não quero perder você nem por uma palavra.)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Contaminação

Talvez você me enxergue jovem, bonita, inteligente, bem de vida, bem amada, com saúde, com uma família, um lugar bacana para morar, uma cachorra linda, projetos e sonhos em andamento. Talvez eu seja um pouco assim. Mas pensar em mim como unidade é muito pouco realista: tenho o amor e os meus amados. O amor, esse complexo vínculo involuntário, me torna parte de algo maior. O amor faz os meus infiltrarem-se em mim, me torna permeável a suas dores, derrotas e perdas. A felicidade vem em gotas, é pontual, efêmera e individual. A dor escorre, infiltra e contamina. Portanto, no meu pouco tempo livre, de quando em quando, eu me reservo o direito de ser infinitamente triste. Mesmo assim, devo confessar de cara que a tristeza sem culpa ainda é sonho de consumo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Navegar só mais um pouquinho...

Que horas serão, devo estar atrasada, oh Deus, quanta luz, o que era mesmo que eu sonhava, meu braço tá dormindo, a cachorra ronca, deve ser cedo, mas que dia é hoje, será que já está na hora, se eu ficar bem quieta ela não acorda, quarta ou quinta talvez, tinha alguma coisa a ver com o mar, vou virar devagar para olhar o relógio, ai minhas costas, não é possível, quanta luz, ah não, despertador dos infernos, não, cadê o botão, cala a boca, era um mar de ressaca, bocejo de bicho no corredor, quarta, acho que hoje é quarta, ouço as patinhas no chão de madeira, isso, fica quieto santinho, se não te jogo pela janela, e essa gente já tá buzinando, cadê meu chinelo, focinho na cara, já vou filha, hoje é quinta, quarta já foi, tenho que ir, já vou cachorra, dá um tempo, será que vai fazer calor, que será que eu visto, para onde eu tenho que ir hoje, tô indo, tô indo, tô levantando, sabe o que é, focinho gelado, é que eu queria navegar na minha cama só mais um pouquinho.

(Mais um texto resgatado do meu antigo blog antes do seu naufrágio definitivo, que será em breve.)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Restos de você

A verdade é que algo de você ficou em mim. Uma tirada, um termo, uma piada. Palavras e convívio tatuam os hábitos. Eu não queria, mas é assim que é. Me incomoda, mas é assim que é. Saiba porém, que isso tudo é bem pouco, é bem pequeno, é só poeira. Hoje sei que EU sou maior do que esses restos de você.

domingo, 11 de abril de 2010

Notícia boba

Meu amigo morcego reproduziu-se. Foi visto com mulher e filho voando em frente ao prédio. A vida está sendo chamada para a cidade ou a cidade simplesmente ocupou tudo? Há uma família de morcegos morando aqui, num bairro paliteiro, em Sampa. O que isso significa?

sábado, 10 de abril de 2010

Serpentes e serpente

Há muitos anos sonho com serpentes, sonhos de todos os tipos, assustadores, horrendos, lindos, fantásticos, comuns. Já me disseram que serpentes simbolizam inimigos, mas eu não acredito. São serpentes internas essas minhas. Durante um tempo trabalhei no Butantan, em frente ao portão da herpetologia. Naquela época, eu já sonhava com serpentes. Durante o dia, imaginava-as lá, tão perto de mim. Medo e fascinação no mesmo bicho. Um dia, quarta nublada, saí do laboratório em formato de estábulo para ir até a copa, que ficava em outra baia. Entre os paralelepípedos gastos e os matinhos, havia um buraco. De dentro desse buraco, saía uma serpente com listas vermelhas, quieta. Um metro ou mais de listas. Nesse dia, bati na porta da herpetologia. A garota de avental branco pegou a serpente com a mão como se pega um fio de cabelo do chão da cozinha e declarou sorrindo: "É verdadeira!".

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Depois te conto. (Para T)

Te encontrei outro dia naquela estrada imensa e vazia. Você me abraçou daquele jeito que não existe mais. Disse estar tão cansada - era longe, eu não acreditaria na burocracia! O medo havia fugido dos seus olhos. Depois de tanto tanto, o medo esvaziou. Mas ainda era você - a ironia, o sarcasmo, a doçura e o sorriso. Você estava linda, já faz um tempo. Depois disso, você não veio mais. Deve estar ocupada com coisas de outra dimensão.

Eu preciso te dizer: algumas piadas perderam a graça. Outras não - depois te conto.

(Reedito esse texto, que havia sido publicado no meu falecido blog, quase no mesmo formato. Faço isso porque ele foi escrito de coração para alguém cuja ausência impregna a vida com gosto residual de adoçante de gotinhas. Saudades todo dia, toda hora.)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Como assim?

Um dia você vai no seu médico/terapeuta/fisioterapeuta/curandeiro e ele pergunta preocupado: "Você nunca extrapola?" - como assim? eu? hãããã - não. Eu nunca extrapolo. - Você percebe, ali na maca, que essa é a única resposta possível e verossímil. Você percebe que o que você acha absolutamente normal e obrigatório é um distúrbio preocupante, pelo menos para o seu médico, que você conhece e confia a anos. Agora esse distúrbio passa a ser preocupante para você. Para mim. Mais uma preocupação. Extrapolar, como assim? Da para aprender isso depois dos 30?

As suas tranças

Voar é para quem sabe ir e voltar. É privilégio nessa era de seres perdidos. Você está perdido. Esqueça as suas opções. Ingenuidade acreditar que as opções podem te ajudar. Olhe para suas amarras, cuide delas, aprenda com elas. Elas são só suas, tão suas, que só você pode trançá-las.